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Revogação geral

Um decreto presidencial assinado esta semana reordena o arcabouço legal demolido por Bolsonaro

A Orquestra de Ouro Preto estava impedida de tocar em outras cidades – Imagem: Ângulo Fotografia
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Em evento realizado na quinta-feira 23, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o presidente Lula e a ministra da Cultura, Margareth Menezes, delinearam a cara da política cultural do governo e, mais que isso, formalizaram o início da solução dos impasses legais herdados dos anos Bolsonaro.

A cerimônia, festiva na forma, oficializou a constituição de um novo arcabouço legal para a cultura. E a palavra novo, aqui, deve ser matizada. Parte do que o texto do decreto assinado por Lula faz é retomar os princípios implodidos pelo Decreto nº 10.755, assinado em 2021 por Jair Bolsonaro e agora revogado.

“O novo decreto parte da constatação de que havia uma quebra da relação entre o Poder Público e a produção cultural”, explicou a CartaCapital, às vésperas do evento, Henilton Menezes, secretário de Economia Criativa e Fomento à Cultura. “Nos últimos anos, foram tomadas medidas com a deliberada intenção de bloquear as atividades culturais.” Ao longo da próxima semana será finalizada a Instrução Normativa que regulamenta as determinações gerais do texto. A partir da IN, o sistema de recebimento de projetos será reaberto.

Menezes, que já havia ocupado a pasta entre 2010 e 2013, tomara contato com o rescaldo bolsonarista durante o trabalho da equipe de transição. Antes de sua primeira passagem pelo MinC, ele tinha realizado um trabalho de destaque como gerente de cultura do Banco do Nordeste.

Henilton Menezes se viu às voltas com um emaranhado de normas – Imagem: Redes sociais

Sua prática e sua percepção das complexidades da Lei Federal de Incentivo à Cultura – cujos princípios já foram fortemente criticados pelo PT – deve ter contribuído para o olhar apaziguador e objetivo que parece nortear o decreto. Ao mesmo tempo que dá ênfase à importância das ações afirmativas e à diversidade, o texto contempla as demandas das grandes instituições geridas por Organizações Sociais (OS) e retira as pegadinhas persecutórias armadas contra os patrocinadores pelo ex-secretário Mário Frias.

O decreto de 2021 impedia, por exemplo, a manutenção de um mesmo patrocinador por mais de dois anos, além de criar tetos de investimento não factíveis. Isso tudo está sendo readequado. E a possível obrigação de investimentos em projetos de fora do eixo Rio-São Paulo, defendida em outras gestões do PT, não figura nas novas linhas gerais do fomento.

“Queremos induzir a descentralização dos investimentos, mas não por meio de cotas, uma vez que isso dificulta a operação do patrocinador”, pondera Menezes. “A cota pode, na prática, afastar o patrocinador. E o Poder Público tem no patrocinador um parceiro.”

As Organizações Sociais também devem voltar a respirar aliviadas, podendo novamente apresentar planos anuais e plurianuais para equipamentos culturais, grupos estáveis, festivais e atividades perenes. Dado o excesso de regras esdrúxulas criadas, quase todas as instituições tiveram os planos anuais recusados em 2022. Terão agora 30 dias para reapresentá-los.

Havia uma determinação, por exemplo, de que os grupos com plano anual não podiam se apresentar fora de sua sede. “O maestro da Orquestra de Ouro Preto me procurou e disse: ‘Agora eu só posso ensaiar! Não posso me apresentar.’ Porque eles ensaiam na sede, em Ouro Preto, mas se apresentam em várias cidades de Minas”, conta Menezes. Isso sem falar nos cachês máximos de 3 mil reais.

A lista de medidas a serem suspensas é longa e evidencia o estrago legado. Para se ter uma ideia, a restrição para a alteração de valores em rubricas dos projetos – mesmo mantendo-se o valor total do orçamento – fez com que haja na ­Funarte mil pedidos de realinhamento de rubrica. Por quê? Porque, se um grupo de teatro decide usar parte do valor previsto na rubrica cenário para consertar um refletor que queimou, tem de pedir autorização para o governo.

“Havia uma quebra da relação entre o Poder Público e a produção cultural”

“O que também vimos muito são normas que miravam uma instituição específica, e acabaram por atingir outras”, diz Menezes. Um exemplo disso foi a regra criada para impedir a captação de recursos pelo Instituto Vladimir ­Herzog. Ao definir que o uso da Lei Rouanet ficaria restrito a instituições exclusivamente culturais, o antigo governo acabou por criar um impedimento involuntário para que o Instituto Inhotim, em Minas Gerais, mantivesse seu projeto original. É que o museu a céu aberto mineiro abriga, além de obras de arte, mais de 4 mil espécies de plantas – numa atividade botânica.

“As mudanças agora propostas tomaram por base dois preceitos. O primeiro era que o arcabouço legal enxergasse a lógica do produtor cultural. O segundo, que se retomasse a instância da sociedade civil”, diz, referindo-se à recuperação do papel da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), um colegiado formado por 21 membros da sociedade civil. “A representação da sociedade é uma ferramenta essencial de gestão.”

Outra mudança importante para que o sistema de fomento à cultura deixe de estar sob ameaça é o que Menezes chama de modernização da prestação de contas. “Não se trata de afrouxar a fiscalização, mas de ter um sistema de prestação de contas mais eficaz e razoável”, diz.

A solução, a exemplo do que está sendo estruturado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), é fazer uma prestação de contas que tenha como base a análise e a entrega do “objeto” (o filme concluído, a peça encenada, o concerto apresentado) e o acompanhamento do fluxo financeiro ao longo da execução. “Desejamos que a produção cultural possa se preocupar mais com a produção e menos com a burocracia.” •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Revogação geral’

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