Cultura

Retrospectiva – As lições de 2020 para a arte e a cultura

Alvo preferencial do governo Bolsonaro, a arte adapta-se no ano pandêmico e aposta em mudanças na forma de consumir cultura

Na Pinacoteca, a exposição Segredos, d’OsGêmeos, está lotada até janeiro. O filme Destacamento Blood, de Spike Lee, pulou as salas de cinema e estreou diretamente em streaming Na Pinacoteca, a exposição Segredos, d’OsGêmeos, está lotada até janeiro. O filme Destacamento Blood, de Spike Lee, pulou as salas de cinema e estreou diretamente em streaming
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Na esfera da administração pública, a área cultural experimenta há quatro anos a mais aguda corrosão da história republicana. Mas tudo se acentuou em 2020, ano em que testemunhamos as quedas de dois secretários de Cultura (Roberto Alvim, em janeiro, após um acesso de simpatia pública pelo Terceiro Reich, e Regina Duarte, em maio, após… nada) e dois ministros aos quais o setor era subordinado (Osmar Terra, em fevereiro, e Marcelo Álvaro Antonio, em dezembro). Para completar, o ano pandêmico termina com um secretário infartado, Mário Frias.

Parecem dados de grande simbolismo, mas na verdade fazem pouca diferença os nomes da ciranda bolsonarista. “Não adianta, o patrão quer uma linha estética, e essa linha estética vai ser seguida”, confidenciou Frias, num acesso de franqueza, sobre a subordinação ao deserto intelectual do Palácio do Planalto. Tampouco influi no desempenho do ministério rumo à descontinuidade. A pasta da Cultura foi transferida do Ministério da Cidadania para o do Turismo em março.

A imagem da Cinemateca Brasileira abandonada, com o maior acervo da América Latina completando um ano fechado, só não é mais melancólica que a cruzada diária do presidente da Fundação Cultural Palmares contra o pensamento organizado da negritude no Brasil. Sérgio Camargo, assessorado por um comitê de olavistas, resolveu promover um rally ideológico contra personalidades que, no passado, tinham sido homenageadas por seu combate pela afirmação racial. O dirigente excluiu da lista artistas como a escritora Conceição Evaristo, o curador Emanoel Araújo e o cantor e ex-ministro Gilberto Gil, entre outros 24 nomes. Ao mesmo tempo, incluiu outros, como o policial Negão do Bope, morto por traficantes em Cabo Frio. Essa ação acabou derrubada pelo Senado há poucos dias.

Dentro desse desmonte, a cultura passou a enfrentar outros dois cancros: o avanço do neopentecostalismo entre seus servidores (agora, há pastores em cargos-chave da Ancine e do Iphan) e o fisiologismo empunhado pela aliança do governo com o Centrão, que avança especialmente sobre o setor audiovisual, ocupando áreas técnicas e acentuando o desastre.

Mas, mesmo ameaçada, a cultura reage, e um claro sinal foi a aprovação da Lei Aldir Blanc, em homenagem ao compositor, morto em maio pela Covid-19. A legislação criou uma série de medidas emergenciais para o setor cultural e criativo do País, com uma injeção de cerca de R$ 3 bilhões na área.

A cultura no Brasil e no resto do mundo teve de se reinventar em 2020. CartaCapital publica a seguir um panorama de destaques culturais que ajudam a refletir sobre o que já foi apresentado e sinaliza para o que está por vir nos próximos meses, pandêmicos ou não.

Os museus online

ARTES VISUAIS – Direcionando recursos que normalmente iriam para monitorias e outros serviços custosos das exposições para mostras online, os museus do mundo todo investiram na sedução do espectador de maneira nova e diferente – e, certamente, perene, porque deve projetar-se para além da pandemia.

O Museu Nacional, o mais antigo do Brasil, no Rio de Janeiro, queimado em um incêndio em setembro de 2018, passou a incluir as atividades de sua própria reconstrução na programação online. Em setembro, inaugurou a versão digital da exposição Os Primeiros Brasileiros e lançou a plataforma digital Museu Nacional Vive, além de uma pesquisa de perfil de público.

Em São Paulo, o Masp investiu na ampliação do conceito de exposição online. Além de postar, o curador, antes tão inacessível, converteu-se numa espécie de guia aberto de suas mostras (em lives e em conferências pela internet), e o museu também imaginou novas perspectivas. Por exemplo: ao abrir a mostra de suas 76 obras do artista francês Edgar Degas, no início de dezembro, emparelhou essa exposição com um painel de fotografias das próprias obras de Degas do seu acervo, feitas por Sofia Borges. No perfil do Instagram, a instituição criou o desafio “desenhos em casa”, na qual as pessoas são convidadas a enviar representações de uma obra de arte. A interação é viral. Mais de 4,3 mil pessoas curtiram o post da recriação do quadro Bailarina de Catorze Anos (1880).

A Pinacoteca está conseguindo atrair o público desde que reabriu em outubro. Só há ingressos para janeiro e fevereiro para a exposição Segredos, da dupla OsGêmeos. O Itaú Cultural investiu fortemente nas atividades remotas, com exposições, seminários, debates, projeções de filmes e apresentações do Festival Arte Como Respiro, uma iniciativa de auxílio a 1,1 mil artistas durante a pandemia.

Na tela do streaming

CINEMA – Tenet, que estreou em 6 de setembro e no Brasil em 29 de outubro, faturou 361 milhões de dólares, quase 150 milhões a mais do que seu orçamento. O longa distópico de Christopher Nolan navegou solitário em um ano que praticamente não existiu para os blockbusters. Com medo de fracasso nas bilheterias, os grandes estúdios de Hollywood decidiram adiar filmes como Viúva Negra e Os Eternos, da Marvel, Top Gun: Maverick, sequência do filme de 1986 da Paramount, e Venom e Os Caça-Fantasmas: Mais Além, da Sony. O clássico West Side Story, que ganhará uma nova versão com a assinatura de Steven Spielberg, deveria estrear neste Natal. Foi reprogramado para as festas natalinas de 2021.

A indústria cinematográfica dos Estados Unidos se movimentou pelo mundo digital, como em Mulan, que pulou as salas de cinema e estreou na nova plataforma Disney+, mas ainda olha com desconfiança o streaming. Frequentemente subestimada pelo Oscar, a Netflix se beneficiou da pandemia não só com o aumento de assinantes, mas também com a oportunidade de concorrer, em 2021, com longas que não foram exibidos em cinemas, uma antiga exigência da academia. Estão nessa lista Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin, Mank, de David Fincher, e A Voz Suprema do Blues, de George C. Wolfe. O controverso Destacamento Blood, de Spike Lee, estrearia em maio no Festival de Cannes, que acabou cancelado pelo coronavírus. O diretor decidiu então lançá-lo diretamente na Netflix, em junho, num deslocamento que ilustra as consequências da pandemia sobre o cinema.

No Brasil, as distribuidoras decidiram não aguardar pela retomada das salas de cinema e lançaram filmes pelos serviços de streaming. Aconteceu com Três Verões, de Sandra Kogut, com estreia limitada em drive-ins e em streaming e no canal Telecine. Outros filmes, como o premiado Pacarrete, longa de estreia de Allan Deberton, Casa de Antiguidades, de João Paulo Miranda Maria, e M-8, de Jeferson De, decidiram estrear só após a reabertura, no final do ano. Em São Paulo, o cine Petra Belas Artes, que reabriu em outubro, com menos de 10% do público habitual, cogitou fechar em dezembro.

Virou filme o show de Emicida (na foto com Majur e Pabllo Vittar) no Theatro Municipal de SP. Teresa Cristina tornou-se soberana das lives

O festival de lives

MÚSICA – Em meio a cancelamentos de festivais, a música ao vivo se viu transferida para a internet, no estranho formato de lives em que os artistas cantam sozinhos, em suas casas, para um público invisível do outro lado da tela do computador ou celular. Quem inovou nessa seara foi a sambista Teresa Cristina, que logo no início da quarentena passou a fazer apresentações diárias de vasto repertório via Instagram, reunindo ao seu redor uma constelação de artistas, políticos e anônimos.

Graças às plataformas virtuais, os álbuns continuaram a ser lançados, com destaque para os “clássicos” Bob Dylan (Rough and Rowdy Ways), Neil Young (Homegrown) e, neste dezembro, o Paul McCartney III do ex-beatle. O mercado de divas pop esteve aquecido, com Dua Lipa à frente. No pop mais sério, brilhou Fiona Apple, com Fetch the Bolt Cutters.

O Brasil ficou retraído diante da pandemia, e entre os veteranos surgiram inéditos de Mateus Aleluia, João Bosco e Martinho da Vila e álbuns de regravações de Caetano Veloso, Gilberto Gil (com o grupo BaianaSystem) e Paulinho da Viola. Entre os mais novos, destacaram-se Luedji Luna, com Bom Mesmo É Estar Debaixo d’Água, e Kiko Dinucci, com Rastilho. O rap gritou alto em 2020, com álbuns fortes de Edi Rock, Rashid, Hiran e Hot & Oreia e EPs de Jup do Bairro e Rico Dalasam. Em dezembro, Emicida apresentou via Netflix o audiovisual AmarElo – É Tudo pra Ontem, com a gravação do show AmarElo no Theatro Municipal de São Paulo, em 2019, e informações sobre o movimento negro brasileiro, uma forma de o artista reivindicar a reparação racial materializada pela presença do rap no espaço nobre paulistano.

O grupo Tapa faz apresentações virtuais e pede doações para não fechar

A quarta parede virtual

ARTES CÊNICAS – Timidamente, o público ensaia uma volta aos teatros, mas em São Paulo a tentativa ainda é manter uma ocupação máxima de 40%. Isso fez com que estreias de novos espetáculos fossem reagendadas para o ano que vem, ainda sem datas definidas. A maioria das companhias teatrais, de circo e dança não voltou, embora tivessem permissão. As artes cênicas demoraram, mas acabaram se rendendo às lives.

O CPT, do Sesc, já criou uma programação virtual que avança para 2021, dentro das Coleções Digitais. No dia 14, entrou em cartaz o espetáculo Fragmentos Troianos, e outras seis encenações sobem ao ar nos próximos dias. O diretor Nelson Baskerville, que durante a pandemia produziu oficinas dramatúrgicas, encerra o ano com a apresentação do espetáculo das(tripas)corações, reunindo crônicas de 24 atrizes e atores criadas no isolamento.

As obras que estão sendo apresentadas em lives por plataformas digitais, como Sympla, Youtube, Instagram ou Whatsapp, retratam um subgênero das artes cênicas que emergiu quando o isolamento social já caminhava para seu fracasso. Também foi fruto de uma necessidade. Inúmeras companhias, sem renda da bilheteria, enfrentam dificuldades financeiras. O grupo Tapa, com mais de 40 anos, faz apresentações virtuais e pede doações para não fechar.

Com o teatro filmado, os artistas atingiram “bilheterias” consideráveis pelo virtual, tateando novos públicos. Irene Ravache, com uma apresentação de Alma Despejada, conquistou quase 50 mil visualizações no canal do Sesc São Paulo. Matheus Nachtergaele, com Desconscerto, outro monólogo, chegou a 30 mil acessos. E até o circo pode comemorar, como a Cia La Mínima, que teve 6,5 mil espectadores com a divertida A Noite dos Palhaços Mudos.

Ailton Krenak defende ser preciso reagir à destruição ambiental

Um ano produtivo

LITERATURA – O ano termina com a consagração da mulher forte, consciente e de escrita madura e consolidada. A vitória de Cida Pedrosa na 68ª festa do Prêmio Jabuti, com o livro de poesia Solo para Vialejo (da pernambucana Cepe Editora), é um sintoma de grandes mudanças no ambiente de antigos lobbies das premiações literárias. Cida fala do sertão nordestino sem clichês, com a modernidade típica da poesia global, mas nunca é neutra (não por acaso, elegeu-se vereadora do Recife pelo PCdoB em novembro).

Outro destaque foi o líder indígena Ailton Krenak, que lançou durante a pandemia A Vida Não É Útil (Companhia das Letras). Na obra, Krenak retoma a reflexão já esboçada em Ideias para Adiar o Fim do Mundo, lançado em 2019, para dizer que já passou da hora de reagir, porque a destruição ambiental em curso é fruto de uma ação deliberada e terá como consequência, se nada for feito, a extinção da Humanidade.

CRÉDITOS DA PÁGINA: LEVI FANAN – NETO GONÇALVES/FLIP, WASHINGTON POSSATO, RONALDO GUTIERREZ E JEF DELGADO

Publicado na edição n.º1137 de CartaCapital, de 23 de dezembro de 2020

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