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Retratistas dos brasis

Walter Firmo, sete décadas de carreira, e Bob Wolfenson, cinco, têm suas trajetórias celebradas e revisitadas

Cores. O livro Desnorte mostra Wolfenson para além dos retratos (à esq.). Clementina de Jesus é uma das mulheres negras da exposição Walter Firmo, no IMS - Imagem: Walter Firmo e Bob Wolfenson
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O fotógrafo Walter Firmo tem andado comovido. “Estes dias, pelas ruas de São Paulo, até uma tontura senti”, diz, sem descartar os efeitos dos 84 anos sobre o corpo, mas atribuindo a sensação, sobretudo, às emoções evocadas pela exposição Walter Firmo: No Verbo do Silêncio a Síntese do Grito.

Em cartaz a partir deste sábado 30 no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo, a mostra reúne 266 imagens produzidas por Firmo ao longo de sete décadas. “No outro dia, me peguei acordado às 3 da manhã, pensando nisso”, conta. “Como consigo dormir se me vejo, de repente, frente a uma homenagem desse tamanho?”

Na semana passada, durante a estada em São Paulo, justamente para acompanhar a montagem da exposição, Firmo jantou com Bob Wolfenson, 68 anos, que também tem andado às voltas, no último ano, com uma retrospectiva não tão extensa no tempo, mas igualmente significativa: a de 50 anos de carreira. ­Wolfenson lançou o livro Desnorte, vendido em suas redes sociais, e terá uma exposição em Minas Gerais, em julho.

É Wolfenson quem, no texto dedicado a Firmo no site da Galeria Mario ­Cohen, que tem ambos no catálogo, confirma o que vaticinara ainda adolescente. Ele tinha 16 anos, quando, como estagiário da Editora Abril, tomou contato com as imagens do colega já então estabelecido no fotojornalismo. “Ele resistiria”, escreve, reproduzindo o que intuíra. “E resistiu”, completa, como constatação.

“Ele sobreviveu porque é genial”, constata, também um tanto emotiva, Janaina Damasceno, curadora-adjunta da exposição do IMS. Janaina, professora e doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisa as imagens dos corpos negros e coordena o grupo de pesquisa Afrovisualidades.

A resistência de Firmo, procura explicar, é a um só tempo individual e coletiva, pois diz respeito a um artista negro, que fotografou negros, desde os célebres, como Pixinguinha, Cartola, Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara, até os que andam pelas ruas, praias e festas populares.

“Como consigo dormir frente a uma homenagem desse tamanho?”, pergunta Firmo

“Acho que o que pauta essa exposição é, sobretudo, o sentimento de justiça. Está se fazendo justiça a um dos maiores fotógrafos brasileiros”, define a curadora. “Walter Firmo nunca teve o reconhecimento que merecia. E aí temos de nos perguntar: quais são os processos de legitimação de um artista negro no Brasil?”

Firmo, na entrevista concedida por telefone a CartaCapital, recontou sua trajetória desde o momento em que fotografar não era sequer sonho de profissão. Ele tinha uns 10 anos quando o pai, que havia se mudado para Recife, pediu a ele que fotografasse a família com as jangadas ao fundo, na praia. Mas avisou: “Não vá cortar as nossas cabeças”.

Inspirado pelas imagens de José Medeiros (1921-1990), publicadas na revista O Cruzeiro, Firmo decidiu, aos 15 anos, que queria ser fotógrafo e conseguiu entrar como aprendiz no jornal Última ­Hora. “Fui sempre autodidata, e acho que fui movido por um certo gosto pela aventura”, ri. “Eu não queria de jeito nenhum ficar sentado atrás de uma mesa de escritório.” Firmo passaria ainda pelo Jornal do Brasil, pela revista Realidade e faria história na revista Manchete.

É nesse lugar, o do velho fotojornalismo, que as trajetórias de Wolfenson e Firmo, muito distintas, se encontram. “Na Abril, eu fotograva de urubu a cobra d’água”, brinca Wolfenson, cuja fama se fez, sobretudo, a partir dos retratos teatralizados e das fotografias de moda.

Significados. Quando começou a trabalhar em uma redação, aos 16 anos, Wolfenson (acima) tinha Firmo (abaixo) como um ídolo. À esquerda, uma imagem de Desnorte e, ao lado, o célebre retrato de Pixinguinha feito por Firmo nos anos 1960 – Imagem: Bob Wolfenson, Duda Firmo e Walter Firmo

No momento em que, nas redações dos jornais e revistas, Wolfenson e Firmo começaram a produzir imagens profissionalmente, era preciso não apenas fotografar o que a pauta pedia, mas colocar em prática uma técnica que, àquela altura, era acessível para poucos.

“Até 20 anos atrás, você precisava saber cálculo, ter noções elementares de física, ligadas a ângulo, incidência e reflexão, tinha de abrir e fechar diafragma”, descreve Wolfenson. “Hoje é tudo no olhômetro. Isso franqueou a muita gente a ­capacidade de ser fotógrafo. Mas, obviamente, nem todo mundo que fotografa é fotógrafo.”

E que lugar, afinal de contas, tem a fotografia artística na contemporaneidade hiperimagética? Tanto Firmo quanto Wolfenson dizem ter encontrado, nas redes sociais, elas próprias revoltas em imagens, um novo espaço para a comercialização de seus trabalhos.

A publicação de Desnorte, que reúne desde fotos muito conhecidas, como seus retratos de Hélio Oiticica e Gisele Bündchen, até registros inéditos de ­ruas, espaços e corpos nus, foi totalmente autofinanciada. Vendida via Instagram, a edição esgotou.

Firmo, por meio do filho, Duda Firmo, também encontrou na rede um canal de acesso importante àqueles que desejam ter, em suas casas, uma fotografia com uma assinatura de grife.

Mario Cohen, fundador da galeria que leva o seu nome e que foi a primeira casa especializada em fotografia no País, diz que, no mundo da arte, a fotografia compete com a pintura – por serem ambas formas bidimensionais.

“Antes, 0 fotógrafo precisava saber cálculo e um pouco de física”, lembra Wolfenson

Segundo ele, a despeito de, internacionalmente, haver fotografias vendidas por meio – e até 1 – milhão de dólares em leilões, esse mercado pode ser considerado incipiente no Brasil. “Aqui não existe a cultura da fotografia como obra de arte. É difícil pagarem por ela”, diz Cohen, que representa, entre outros, Wolfenson, Sebastião Salgado, Araquém Alcântara, ­Otto Stupakoff e Cristiano Mascaro.

Firmo também trabalhou com a galeria, mal ela tinha aberto. Cohen lembra-se do fotógrafo chegando ao espaço, então no Rio da Janeiro, com vários sacos de supermercado contendo slides. Ao saber do relato, Firmo relembra: “Formamos uma boa dupla e fizemos uns bons trocados”.

Na SP-Arte, feira realizada este mês em São Paulo, a Mario Cohen era a única galeria dedicada exclusivamente à fotografia. “O preço que pago pelo metro quadrado é o mesmo pago pelas galerias que representam a Adriana Varejão ou a Beatriz Milhazes”, diz Cohen, observando que o retorno é, obviamente, menor.

O galerista não nega, porém, que ao mesmo tempo que todos nos tornamos fotógrafos, as imagens assinadas por grandes nomes passam a atrair jovens executivos e profissionais liberais. “É mais pelo olhar da decoração do que da obra de arte. Mas tá valendo”, brinca.

Tanto Wolfenson quanto Firmo percebem esse gosto. São, sobretudo, os retratos de gente famosa que atraem compradores. Mas, aos 50 anos de carreira um e 70 o outro, ambos se dão ao luxo de produzir as imagens que desejam, mesmo que sejam menos comerciais.

“Nestes anos, fotografei políticos, artistas, prostitutas. A nação. Hoje, sou dono do meu olhar”, diz Firmo. “Mas quem vende é o meu filho, porque sou poeta e, se deixar por minha conta, doo tudo.” Seu acervo está sob a guarda do IMS desde 2018, em regime de comodato.

“O trabalho comercial me deu recursos para eu investir nos trabalhos pessoais que, muitas vezes, vão na direção oposta ao mundo cosmético, onde tudo é embelezado. Acho que consegui, nesses anos, transitar palas várias disciplinas e possibilidades da fotografia”, diz ­Wolfenson, sem negar que sabe muito bem que quem deseja ser fotografado por ele espera, no fundo, ficar bonito. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Retratistas dos brasis”

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