Relações enganosas

A dicotomia belo/bom x feio/mau está arraigada em nossas vidas

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Impossível saber quem primeiro estabeleceu a relação belo/bom x feio/mau, uma oposição em que as duplas não se misturam. Já no Romantismo (1836-1881, no Brasil) havia qualquer coisa assim.

Um exemplo à mão é O Guarani, de José de Alencar. Ceci é loira, bonita, espiritualizada, uma candura de jovem, e representa, em todos os lances do romance, o lado do bem. Ela é a virtude. Sua prima (ou irmã?), Isabel, é morena, sensual e representa o vício, a carne e o desejo. Isabel é do mal, a embriaguez, a irracionalidade. O Romantismo era maniqueísta, acreditava em dois campos opostos e impermeáveis. Não havia mediação entre os extremos.

Mas o Romantismo, suponho, não inventou a relação acima, que deve ter-se originado bem antes. Claro, pois Maniqueu viveu em fins do século III de nossa era. Suas ideias invadiram a Idade Média e fragmentos delas foram componentes da mentalidade do século XIX.

Se podemos estabelecer o nascimento da relação enganosa, com alguma exatidão, é bem fácil sugerir o que ajuda a engordar a ideia errada.

Nossos valores são-nos transmitidos pela família, pela escola, pela sociedade em geral. Mas hoje, com o poder de persuasão e sedução exercidos pelo cinema e pela televisão, principalmente, não é difícil identificar nesses veículos o reforço diuturno do erro. A relação falsa é naturalizada, e a população, há muito reduzida a telespectadores, a engole com prazer como sorvete em dia de calor. 

O cinema de Hollywood, que há muitas décadas vem formando opinião, estabelece invariavelmente a relação. Contra nós, sulistas e latinos. O mocinho e o bandido. Não é só em faroeste, não. Em sua linha urbana a relação continua. Menos visível, mais disfarçada, mas continua.


Nos faroestes o contraste é mais gritante. O mocinho é bonito, charmoso, está do lado do bem e da justiça. O bandido é feio (muitas vezes com cara de latino-americano), está do lado do mal e do crime. E isso não implica ideologia? Claro que implica. E é transformada essa ideologia em opiniões políticas.

E eu, que, contrariando a opinião de minha falecida mãe, não me considero bonito, devo então admitir que estou do lado do mal? Vou pedir ajuda à madre Teresa, que era boa, segundo a opinião geral, mas nada bela, segundo minha opinião.

As crianças crescem vendo novelas que confirmam o absurdo, e isso tem como consequência erros de avaliação e como resultado atitudes equivocadas.  

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