Cultura
Rei morto, rei ressuscitado
O monarca medieval Ricardo III está no centro uma acirrada disputa histórica e cultural no Reino Unido


Para alguém que morreu há mais de 500 anos, o rei Ricardo III tem rendido um número notável de notícias – muitas delas, polêmicas, que vão de brigas entre historiadores a controvérsias a respeito dos atores escalados para representá-lo.
Há muito tempo existem batalhas em torno de sua reputação. Elas acontecem tanto entre os que tentam nos desacreditar do infame retrato de vilão monstruoso feito por William Shakespeare quanto entre os historiadores. Que tipo de rei era Ricardo? Um tirano que assassinou seus sobrinhos ou um líder justo e corajoso, cuja reputação foi manchada pelos Tudor, que o sucederam?
“De certa forma, ainda estamos lutando a Guerra das Rosas”, sorri Philippa Gregory, romancista histórica best seller, sobre esse antigo sectarismo. Existe até uma Sociedade Ricardo III, dedicada a reabilitar sua reputação. “É algo muito raro para uma figura histórica.”
Os ricardianos devotados sem dúvida ficarão entusiasmados com o último trabalho de Philippa: Richard, My Richard, sua primeira peça, que acaba de estrear e mostra Ricardo III ressuscitando do túmulo em um estacionamento em Leicester e discutindo com a figura personalizada da História, numa tentativa de limpar seu nome.
No país, até mesmo a escalação de atores sem deficiência para viver Ricardo III tem gerado controvérsias
Philippa foi capturada pela ideia quando assistiu ao novo enterro de Ricardo III em 2015, após a exumação de seu cadáver. “Estar no enterro de um rei medieval foi extraordinário”, diz ela. “Foi uma verdadeira manifestação de carinho e respeito por ele.”
Durante o funeral, ela ouviu conversas sobre os danos à reputação do rei causados por Shakespeare em sua peça de 1592-1593 e, nessa mesma ocasião, alguém sugeriu a ela que escrevesse uma peça para restabelecer o equilíbrio de visões. Ela gostou da ideia. E, então, Philippa acredita que Ricardo III foi um líder bom e nobre?
“Não, acho que ele foi um rei medieval”, responde rapidamente. “Ele era incrivelmente violento e foi culpado por assassinatos inconstitucionais. Mas o retrato que Shakespeare faz dele, ao ponto de até seu corpo ser bestial… isso, obviamente, não é verdade sobre ninguém. Hoje sabemos que você não passa dois anos no ventre de sua mãe e sai como um assassino psicótico.”
A peça pretende “recuperar o Ricardo histórico, na medida do possível”, diz a escritora. Isso significou respeitar algumas lacunas históricas, mantendo um nível de ambiguidade na narrativa – mais notadamente, em torno do destino dos príncipes na torre, muitas vezes apelidados de “maior mistério da história britânica”.
Representatividade. Arthur Hughes (à esq.) é um dos atores deficientes a viver o papel imortalizado por Laurence Olivier (acima) no filme rodado em 1955 – Imagem: Ellie Kurttz e London Film/Janus Films
Durante muito tempo acreditou-se que Ricardo III mandou matar seus sobrinhos Eduardo V, de 12 anos, e Ricardo, de 9, em 1483. Certamente, os príncipes desapareceram dos registros. E, em 1674, dois pequenos esqueletos foram encontrados embaixo de uma escada na Torre de Londres. Mas nunca foram submetidos a testes de DNA e, recentemente, surgiram pesquisas que apoiam a teoria de que os meninos escaparam.
A escritora Philippa Langley, que liderou a exumação de Ricardo III, conduziu um projeto de pesquisa em toda a Europa, com 300 voluntários que vasculharam arquivos em busca de evidências sobre os príncipes. Em seu recente livro, tornado também um documentário, The Princes in the Tower (Os Príncipes na Torre), ela explica por que acredita que Ricardo não assassinou os meninos.
Entre as descobertas mais emocionantes estão várias provas de vida encontradas em arquivos, que parecem lançar luz sobre o que os príncipes fizeram nas décadas seguintes ao desaparecimento. Eles fugiram para várias partes da Europa e, quando jovens, no fim das décadas de 1480 e 1490, prepararam-se para liderar seus seguidores em invasões malsucedidas à Inglaterra.
As novas descobertas incluem um relato supostamente escrito pelo príncipe Ricardo sobre sua própria vida, além de recibos de armas e serviços para os príncipes Ricardo e Eduardo. Os críticos afirmam não passar tudo de ilusão: a declaração seria falsa e os recibos, assinados por impostores.
Os arquivos indicam que os sobrinhos que o rei teria mandado matar escaparam da Torre de Londres
Entre os historiadores dissidentes estão Nigel Jones, que zombou das teorias chamando-as de “lixo revisionista ridículo”, e Tom Holland, para quem “a idealização de Ricardo III, um rei totalmente desastroso e assassino de sobrinhos, é uma coisa maluca”.
Mas Philippa Langley está convencida de que Ricardo III não é um monstro matador de crianças como o pintam, e sim um líder “leal, corajoso, devoto e justo”. Ela argumenta que as fontes arquivísticas pintam um quadro muito diferente da visão posterior dos Tudor: “Ricardo III foi o precursor das fake news”.
Perguntada sobre a razão pela qual alguns são tão resistentes às descobertas, ela diz que “muitas vozes poderosas construíram carreiras longas e ilustres repetindo histórias centenárias, sem questionamento e investigação adequados. Perturbei um esquema estabelecido há muito tempo”.
Nenhum historiador, hoje, dedica muita atenção à representação de Ricardo III feita por Shakespeare. Além disso, as liberdades tomadas pelo dramaturgo para descrever o corpo de Ricardo têm gerado suas próprias brigas.
Quando seu esqueleto foi desenterrado, a análise mostrou que ele tinha escoliose – condição que causa curvatura na coluna vertebral –, mas a descrição shakespeareana de um corcunda, com um braço atrofiado e manco é, provavelmente, uma licença artística. Segundo Philippa Langley, as fontes da época mostram que ele era um lutador “forte e em boa forma”.
Ao mesmo tempo, Ricardo III ainda é um raro protagonista no cânone ocidental descrito especificamente como deficiente e isso faz com que, agora, se argumente que ele só deveria ser interpretado por um ator deficiente.
Recentemente, a diretora artística do Globe Theatre, Michelle Terry, gerou reclamações ao anunciar que interpretaria o papel. A Aliança de Artistas Deficientes escreveu uma carta aberta que foi assinada por mais de 180 artistas e organizações; houve várias declarações em defesa da medida do Globe; e foram escritos artigos defendendo que os atores apenas fingem e devem poder interpretar quem quiserem. Restou, disso tudo, a desanimadora sensação de que Ricardo III pode tornar-se um joguete em meio a guerras culturais mal-intencionadas.
Michelle Terry não quis falar ao Observer, mas, em uma longa declaração pública, em janeiro, ela explicou que “não interpretaria Ricardo com uma deficiência visível ou física” e que desejava remover a mistura do mal com deficiência física. “Que peça experimentaremos se essa fusão for removida?”, perguntou. “Ficaremos com um drama sobre tirania, abuso de poder e misoginia tóxica, algo que, neste momento, sentimos ser importante explorar.”
A defesa, no entanto, levou Michelle da frigideira para o fogo, com os críticos argumentando que o Globe está não apenas negando a um ator deficiente a chance de interpretar um dos raros papéis de deficientes, como apagando completamente a experiência dos deficientes.
“Nem daqui a 1 milhão de anos você diria: ‘Vou interpretar Otelo como uma mulher branca – e tirar a questão racial da agenda’. Você não faria isso”, diz Jenny Sealey, diretora artística da Graeae, companhia de teatro liderada por artistas surdos, deficientes e neurodivergentes.
Mistério histórico. A exumação do corpo faz parte de um amplo projeto de pesquisa – Imagem: Acervo Phillippa Langley
Teria o papel de Ricardo III se tornado um daqueles que apenas alguns atores podem interpretar? Sim, parece ser a resposta. Várias produções teatrais escalaram, recentemente, atores deficientes: Mat Fraser para Northern Broadsides, em 2017; Daniel Monks em uma atualização moderna de Teenage Dick, no Donmar em 2019; e Arthur Hughes para a Royal Shakespeare Company em 2022.
“Estou no Graeae há quase 27 anos e tenho lutado pela mesma agenda desde o primeiro dia”, diz Jenny, lembrando que essa não é uma luta nova. “Quando, finalmente, vi Mat Fraser fazendo Ricardo III, pensei: ‘Sim, obrigada!’”
Por isso que a escalação do Globe foi recebida como um retrocesso na luta por representatividade. Mas, e quanto ao Richard, My Richard de Philippa Gregory? A nova peça, por ora, não gerou muitas críticas por elencar o não deficiente Kyle Rowe.
“Toda a agitação sobre como você encena Ricardo III de Shakespeare não se aplica a nós”, diz Philippa, rapidamente. “Queria escrever uma peça sobre um Ricardo III saudável. Estamos fazendo Ricardo como ele foi registrado na época – bonito, forte, leve.” Sua escoliose, sugere ela, talvez nem fosse perceptível para outras pessoas,
Este argumento não cola para Jenny. “Alguns dizem: ‘Oh, bem, a escoliose de Ricardo não era muito óbvia, não teve realmente impacto em sua vida cotidiana’. Como você sabe disso?”, pergunta. “Muitas pessoas com deficiência podem ter estratégias de sobrevivência que mascaram o impacto que a deficiência, visível ou invisível, tem em sua vida.”
Nos bastidores, a companhia Graeae tem conversado com a Shakespeare North. “Eles sabem o quanto estou decepcionada”, confirma Jenny. “Vamos fazer um Shakespeare com eles e, simplesmente, dissemos: ‘Por que não falaram conosco? Onde estão as pessoas surdas e deficientes na tomada de decisões?’”
O que todos esses criadores e artistas parecem querer é que vejamos Ricardo III de maneira totalmente nova. Na peça de Shakespeare, seu personagem diz: Minha consciência tem mil línguas diferentes / E cada língua traz uma história diferente / E cada história me condena como um vilão.
Hoje, a vilania de Ricardo não é mais uma certeza, e são muitas a histórias conflitantes sobre ele. Certamente, nenhum outro rei morto inspira uma lealdade tão feroz – ou tamanha divisão. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rei morto, rei ressuscitado’
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