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Reencontro machadiano

O bruxo do Cosme Velho é revisitado com a publicação conjunta de 26 obras e a abertura de uma exposição

Reencontro machadiano
Reencontro machadiano
O escritor em uma foto colorizada digitalmente – Imagem: Acervo ABL/Marina Amaral/Itaú Cultural
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Machado de Assis é um enigma. Analista profundo da condição humana, para uns, romancista entranhado nos assuntos brasileiros, para outros, o escritor carioca desperta interpretações distintas, a depender das motivações do leitor.

Talvez porque, como sabem todos, Machado quase nunca tenha percorrido os caminhos mais óbvios. Mesmo os que pregam o seu caráter universal reconhecem seu enquadramento nacional. De outro lado, os que sustentam o seu rea­lismo brasileiro admitem que, para chegar a tanto, ele precisou lançar mão – sobretudo em sua última fase – de artifícios formais à época pouco frequentes na literatura do País.

É justamente essa pluralidade de “Machados” que nos salta aos olhos com a publicação, pela editora Todavia, em parceria com o Itaú Cultural, das obras completas do “bruxo do Cosme Velho” – assim chamado, em verso, por Drummond. A coleção de 26 volumes nos revela um autor incontornável, que foi um grande romancista, mas também poeta, dramaturgo, contista e ensaísta. Terras, Compilação para Estudo, por exemplo, reúne leis, resoluções, portarias etc., que testemunham sua atuação como servidor público.

A edição é resultado de quatro anos de pesquisa, que envolveram mais de 20 pessoas, sob coordenação de Hélio de Seixas Guimarães, professor da Universidade de São Paulo , que também assina as apresentações dos volumes. Neste momento, será disponibilizada apenas a caixa completa, com tiragem limitada. A partir de 2024, os títulos serão vendidos separadamente.

As edições respeitam o estilo particular das pontuações dos textos machadianos – que foram sendo alteradas em sucessivas edições. Para o leitor de hoje, a dicção expressiva da prosa de Machado – carregada de ênfases, hesitações e ironias – pode parecer anacrônica ou deslocada. Mas é justamente nesse tensionamento da linguagem que podemos flagrar a dinâmica narrativa própria por meio da qual Machado tornava literário o real.

Dos romances destacam-se aqueles que, na conhecida interpretação do crítico Roberto Schwarz, transpõem no conteúdo e, acima de tudo, na forma aspectos do processo social brasileiro da segunda metade do século XIX.

Seu retrato crítico das elites parece, em determinadas passagens, tão atual quanto antes

São os casos, em ordem cronológica, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba ou Dom Casmurro, dentre outros. Para Schwarz, um narrador como Brás Cubas, que ora diz uma coisa, ora o contrário, pode ser visto como a formalização literária do modo ambivalente como as elites brasileiras se equilibravam entre as ideias liberais e a estrutura social marcada pelo escravismo e pela lógica pessoalizada do favor, situação que fazia com que aquelas ideias parecessem “fora de lugar”.

Mas não se trata, nem para Schwarz, de negar a dimensão “universal” de Machado – que, mais recentemente, vem sendo reforçada pela recepção internacional. O poe­ta norte-americano Allen Ginsberg, por exemplo, dizia ser ele outro Kafka. Trata-se, na verdade, de mostrar que até mesmo essa universalidade só pode ser compreendida à luz das singularidades de um país periférico como o Brasil. A desenvoltura formal e linguística de Machado não está, portanto, em contradição com a sua dimensão nacional. Uma ilumina a outra, e é nessa superação tanto do universalismo sem lastro real quanto do localismo restritivo que sua obra ganha força crítica.

Há muito se discute o alcance da perspectiva “política” de Machado de Assis. Criticado por seu tratamento pouco incisivo da instituição da escravidão, ele não deixou também de ser elogiado por tê-la transformado, em seus contos e romances, em elemento fundamental para a compreensão do Brasil do século XIX.

Se o seu “instinto de nacionalidade” não fez dele um abolicionista de primeira hora, é inegável que a sua obra nos coloca diante de alguns dos impasses das origens do Brasil moderno, em cujo núcleo figurava a escravidão. É isso que aponta, por exemplo, Paulo Dutra, professor da Universidade do Novo México (EUA) responsável pelas notas sobre a presença da questão racial na obra do escritor brasileiro.

Voltar a Machado hoje significa o retorno a um autor cujo pertencimento ao passado literário nacional não o impede de continuar a nos interpelar no presente. Seu retrato crítico das elites parece, em certas passagens, tão atual quanto antes, bem mais de um século depois.

Nesse sentido, o distanciamento irônico da prosa machadiana, muitas vezes confundido com absenteísmo político, acaba por se tornar a alavanca de sua atualidade sempre renovada, como se seus textos sempre tivessem algo novo a nos dizer.

Afinal de contas, se é verdade que, de lá para cá, o Brasil mudou, é certo também que ainda temos muito passado pela frente. E esse passado Machado entendeu como poucos. •

Em 2024, os volumes serão vendidos separadamente

LISTA DE LIVROS

Desencantos (1861): Peça de teatro
Teatro (1863): Duas comédias
Quase Ministro (1864): Peça de teatro
Crisálidas (1864): Poesia
Os Deuses de Casaca (1866): Peça de teatro
Falenas (1870): Poemas
Contos Fluminenses (1870): Contos
Ressurreição (1872): Romance
Histórias da Meia-Noite (1873): Contos
A Mão e a Luva (1874): Romance
Americanas (1875): Poemas
Helena (1876): Romance
Iaiá Garcia (1878): Romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881): Romance
Tu só, Tu, Puro Amor… (1881): Peça de teatro
Papéis Avulsos (1882): Contos
Histórias sem Data (1884): Contos
Quincas Borba (1891): Romance
Várias Histórias (1896): Contos
Páginas Recolhidas (1899): Contos, ensaios, discursos
Dom Casmurro (1899): Romance
Poesias Completas (1901): Poemas
Esaú e Jacó (1904): Romance
Relíquias da Casa Velha (1906): Gêneros variados
Memorial de Aires (1908): Romance
Terras, Compilação para Estudo (1886): leis, decretos, resoluções, portarias etc.


Fábio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.

A história em imagens e objetos

A Ocupação Machado de Assis, no Itaú Cultural, aborda, entre outros temas, o embranquecimento do autor nascido no Morro do Livramento

por Ana Paula Sousa

O contrato de venda de Quincas Borba para a editora francesa Garnier e a saída do caixão com o corpo do escritor rumo ao cemitério, no Rio – Imagem: Acervo ABL

Para marcar o lançamento da coleção Todos os Livros de Machado de Assis, o Itaú Cultural, em São Paulo, abrirá, no sábado 18, a Ocupação Machado de Assis. A exposição ajudará a contar a história do escritor nascido em 1839, no Morro do Livramento, hoje chamado Pequena África, no Rio, e morto em 1908.

Os visitantes serão recebidos por uma imagem em grandes dimensões do autor e, a partir daí, tomarão contato com fotos, manuscritos, cartas, exemplares de suas próprias obras e também daquelas de autores que o influenciaram.

Como costuma acontecer com as Ocupações, será reproduzido, no espaço, o ambiente no qual se deu a construção dessa obra gigantesca. Uma escrivaninha, penas, tinteiro, mata-borrão, ampulheta, pincenê e caderneta de notas – numa mistura de originais e réplicas – ajudarão as novas gerações a compreender o que significava escrever quando Machado escrevia.

Filho de um pintor de paredes afrodescendente e de uma lavadeira portuguesa, Machado viveu 50 de seus 69 anos sob o regime escravocrata. Seu embranquecimento, em fotos e narrativas, é um dos temas da Ocupação. O racismo é encarado, por exemplo, por meio dos retratos antigos do autor submetidos agora a um processo de colorização feito por Marina Amaral.

Assim como a coleção de livros, a exposição oferece uma visão ampla a respeito desse homem que foi múltiplo não só nos formatos textuais aos quais aderiu, mas na própria forma de ser. Escritor, funcionário público e tradutor de vários idiomas, ele foi também enxadrista.

Entre os objetos selecionados, há os manuscritos de romances como Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908) e as primeiras edições de algumas de suas obras, como a peça Desencantos: Fantasia Dramática (1861) e o romance Quincas Borba (1891).

Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Reencontro machadiano’

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