Cultura

Raro e caro. Que bom

É importante não ter de montão o que é escasso, seja para o mundo, seja para nós

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Voltei a fazer uma ­quase travessura que há muito relatei nesta página: pão francês estalando de fresco, com requeijão de leite de búfala, lotadinho de caviar. O caviar é fajuto. São ovas de lumpfish, que ganharam, por força de alguma importante lei, a tradução para “peixe-lapa”. Um peixe que vive nas águas frias do Chile. Mas é razoável. Custa 60 reais ou pouco mais o pote com 100 gramas. O caviar de verdade deve estar valendo 20 vezes isso.

Minha filha perguntou se a diferença é muito grande. Se a gente percebe que um beluga é 20 vezes melhor. Eu tive meu momento de nostalgia e tristeza diante da pergunta. Há muitos anos não como um bom caviar. Não me faz falta, confesso. Mas também confesso que as poucas vezes que pude fazê-lo me senti muito feliz, recompensado.

Vi um americano de Santa Monica fazer isso em Seefeld, uma estação de esqui na Áustria, no dia 1º de janeiro de 1986: comeu blinis com caviar no café da manhã e tomou champanhe. Disse que dava sorte. Pensei: é bom que dê ou não terá como pagar uma despesa como essa logo no primeiro dia do ano. Cheguei a imitá-lo algumas vezes, mas sem o champanhe. O álcool ao amanhecer nunca me interessou.

E faço um rápido parêntese para comentar o trecho de um conto, pequena obra-prima, de John Cheever, chamado A Quimera. O protagonista leva o café para sua esposa na cama e o descreve: “Era um belo café da manhã. Dois ovos cozidos, uma porção de mil folhas e uma Coca-Cola com um pouquinho de gim. É assim que ela gosta”.

E posso dizer mais. Recentemente, em andanças pelos Estados Unidos, pude ver, com esses olhos ­acostumados a estranhos hábitos, a confirmação de que uma Coca-Cola continua a ser grande companheira das primeiras horas para muitos americanos. Claro que agora deram um passo em direção ao mundo saudável e consomem somente a Zero.

Não sei se com um pouquinho de gim o dia fica mais interessante, mas arrisco dizer que sim. Volto ao caviar, que para minha alegria continua sendo um produto raro, sem a interferência do Júnior. Ainda não produziram o caviar sabor picanha, que arrasaria quarteirões em nosso país. Ou o caviar sabor cheeseburger para vencer a ameaça comunista na América.

Torrada feita na hora com coalhada seca de boa qualidade, coberta com as tais ovas de peixe lapa, também fazem um café da manhã ser especial e nem tão caro.

As ovas de salmão chegaram a ter quase o mesmo efeito de alegria para mim. Porém, como tudo na vida que abunda, perde a graça. Moro em local cercado de restaurantes japoneses. Ovas de salmão rolam ladeira abaixo. E o mundo da raiz- forte, do arroz, da alga, para mim não conversa de maneira tão fluida com as ovas como fazem o creme azedo, a coalhada e até o citado requeijão de búfala.

Uma heresia vale? Há muitos anos montei um filme na bitola Super 8 para um trabalho da faculdade. Um ­trabalho insano que requer a ­paciência rara de quem se dispõe a encará-lo. ­Paciência eu tinha. E, por não ser tão rara, trouxe para meu lado uma garrafa de um bom uísque e um pote de razoável caviar. Fiz alguns blinis, um creme azedo e fui entrando na noite, ouvindo centenas de vezes a trilha, que era a magistral Francisco, com Milton Nascimento. Não me lembro de ter ficado bêbado ou ter me incomodado com a não ­ortodoxa harmonização do uísque com caviar. Eu me senti apenas triste por ter visto tudo chegar ao fim. A garrafa, o caviar, o trabalho.

O que está escondido neste Refô de hoje é um assunto que volta e meia me pega e me dá vontade de falar sobre: é importante não ter de montão o que é raro, seja para o mundo, seja para nós. Dia de refrigerante era dia de festa.

Melhor coisa que isso tem? Ficar feliz, festejar porque podemos tomar um refrigerante? No fundo é tudo mais simples. A gente é que pegou gosto em complicar.

Voltei a fazer uma ­quase travessura que há muito relatei nesta página: pão francês estalando de fresco, com requeijão de leite de búfala, lotadinho de caviar. O caviar é fajuto. São ovas de lumpfish, que ganharam, por força de alguma importante lei, a tradução para “peixe-lapa”. Um peixe que vive nas águas frias do Chile. Mas é razoável. Custa 60 reais ou pouco mais o pote com 100 gramas. O caviar de verdade deve estar valendo 20 vezes isso.

Minha filha perguntou se a diferença é muito grande. Se a gente percebe que um beluga é 20 vezes melhor. Eu tive meu momento de nostalgia e tristeza diante da pergunta. Há muitos anos não como um bom caviar. Não me faz falta, confesso. Mas também confesso que as poucas vezes que pude fazê-lo me senti muito feliz, recompensado.

Vi um americano de Santa Monica fazer isso em Seefeld, uma estação de esqui na Áustria, no dia 1º de janeiro de 1986: comeu blinis com caviar no café da manhã e tomou champanhe. Disse que dava sorte. Pensei: é bom que dê ou não terá como pagar uma despesa como essa logo no primeiro dia do ano. Cheguei a imitá-lo algumas vezes, mas sem o champanhe. O álcool ao amanhecer nunca me interessou.

E faço um rápido parêntese para comentar o trecho de um conto, pequena obra-prima, de John Cheever, chamado A Quimera. O protagonista leva o café para sua esposa na cama e o descreve: “Era um belo café da manhã. Dois ovos cozidos, uma porção de mil folhas e uma Coca-Cola com um pouquinho de gim. É assim que ela gosta”.

E posso dizer mais. Recentemente, em andanças pelos Estados Unidos, pude ver, com esses olhos ­acostumados a estranhos hábitos, a confirmação de que uma Coca-Cola continua a ser grande companheira das primeiras horas para muitos americanos. Claro que agora deram um passo em direção ao mundo saudável e consomem somente a Zero.

Não sei se com um pouquinho de gim o dia fica mais interessante, mas arrisco dizer que sim. Volto ao caviar, que para minha alegria continua sendo um produto raro, sem a interferência do Júnior. Ainda não produziram o caviar sabor picanha, que arrasaria quarteirões em nosso país. Ou o caviar sabor cheeseburger para vencer a ameaça comunista na América.

Torrada feita na hora com coalhada seca de boa qualidade, coberta com as tais ovas de peixe lapa, também fazem um café da manhã ser especial e nem tão caro.

As ovas de salmão chegaram a ter quase o mesmo efeito de alegria para mim. Porém, como tudo na vida que abunda, perde a graça. Moro em local cercado de restaurantes japoneses. Ovas de salmão rolam ladeira abaixo. E o mundo da raiz- forte, do arroz, da alga, para mim não conversa de maneira tão fluida com as ovas como fazem o creme azedo, a coalhada e até o citado requeijão de búfala.

Uma heresia vale? Há muitos anos montei um filme na bitola Super 8 para um trabalho da faculdade. Um ­trabalho insano que requer a ­paciência rara de quem se dispõe a encará-lo. ­Paciência eu tinha. E, por não ser tão rara, trouxe para meu lado uma garrafa de um bom uísque e um pote de razoável caviar. Fiz alguns blinis, um creme azedo e fui entrando na noite, ouvindo centenas de vezes a trilha, que era a magistral Francisco, com Milton Nascimento. Não me lembro de ter ficado bêbado ou ter me incomodado com a não ­ortodoxa harmonização do uísque com caviar. Eu me senti apenas triste por ter visto tudo chegar ao fim. A garrafa, o caviar, o trabalho.

O que está escondido neste Refô de hoje é um assunto que volta e meia me pega e me dá vontade de falar sobre: é importante não ter de montão o que é raro, seja para o mundo, seja para nós. Dia de refrigerante era dia de festa.

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