Cultura

assine e leia

Quem é o culpado?

Surge, em todas as telas, uma onda de clássicas aventuras policiais puxada por tramas de Agatha Christie

Quem é o culpado?
Quem é o culpado?
Suspeitos. Glass Onion: Um Mistério Knives Out (à esq.), sequência de Entre Facas e Segredos (2019), será lançado na Netflix brasileira em dezembro - Imagem: Netflix
Apoie Siga-nos no

Um sol grego brilhante bate em Daniel Craig, Kate ­Hudson, Edward Norton e Janelle Monáe em Glass Onion: Um Mistério Knives Out, sequência de Entre Facas e Segredos, inesperado sucesso de 2019. Quando a nova produção da franquia Knives Out for lançada (no Brasil, o filme estreia na Netflix em dezembro), o público será apresentado a vários suspeitos, à maneira consagrada, enquanto o cavalheiresco detetive Benoit Blanc, de Craig, se dedica a solucionar um crime misterioso.

Os brilhantes filmes Knives Out são um exemplo potente, mas estão longe de serem os únicos lançamentos a marcar a chegada­ do tradicional gênero Whodunnit, corruptela de who has done it? (quem é o culpado?), ao território dos grandes sucessos. Os produtores de cinema hoje estão dispostos a arriscar cifras altas nas clássicas aventuras policiais antes reservadas aos especiais de domingo à tarde na televisão.

“Esse tipo de drama é um fenômeno global agora”, diz James Prichard, presidente e executivo-chefe da Agatha ­Christie Ltd. e bisneto da autora. “Tudo mudou com Kenneth Branagh e seu Assassinato no Expresso do Oriente. Ao investir um dinheirão nessa produção, a Fox fez algo incrível: mostrou que as pessoas ainda querem histórias de crimes misteriosos. A Netflix e outros rapidamente captaram a ideia.”

Glass Onion – título tirado de uma música dos Beatles e da estrutura de cúpula transparente que domina o cenário da ilha no filme – é lançado poucos meses depois da formação estelar de atores de Branagh ter navegado rio abaixo no segundo de seus remakes de Agatha Christie, Morte no Nilo (2022).

Entusiasmados com alguns sucessos, os produtores mostram-se dispostos a arriscar cifras altas no gênero whodunnit

Em setembro, o público britânico compareceu em massa às sessões de Veja Como Eles Correm (2021). Reviravolta lúdica no formato clássico, esse policial gira em torno da peça A Ratoeira, de Christie. No desfecho do filme, a dupla de detetives vivida por Saoirse Ronan e Sam Rockwell encontra a própria autora, interpretada por Shirley Henderson.

O diretor e roteirista norte-americano dos filmes Knives Out, Rian Johnson, descreveu Glass Onion com otimismo e disse tratar-se mais de um “equivalente” do que de uma “sequência”. Johnson afirma que ambos os roteiros foram inspirados na obra de Christie, mas o novo é, claramente, resultado direto do sucesso comercial do primeiro.

O orçamento é empregado, sobretudo, na construção de um espetáculo. O mundo de alta tecnologia por ele criado aproxima Craig mais das engenhocas com que brincava como James Bond do que das ferramentas dedutivas analógicas de Hercule Poirot e Miss Marple.

Prichard, definitivamente, está certo sobre o novo alcance mundial do modelo básico de who done it? No Reino Unido, foi exibido, no último fim de semana, no Channel 4, uma elegante versão francesa de um dos livros mais famosos de Christie: E Não Sobrou Nenhum (Globo Livros). A série, cujo título original é Ils Étaient Dix (Eles Eram Dez), coloca um grupo de suspeitos em outra ilha ensolarada, desta vez um resort tropical. O grupo aparentemente aleatório logo descobre que está isolado do resto do mundo.

Em agosto, havia sido lançada na ­Amazon Prime Video inglesa a série chinesa Checkmate, baseada nas histórias de Christie sobre o detetive ­Poirot. “Se o gênero policial está crescendo, é fato que desempenhamos um papel importante nisso. Afinal, minha bisavó escreveu 66 romances e 20 peças sem se repetir ou cometer muitos erros”, diz ­Prichard. “Mas eu odeio a expressão policial aconchegante”, acrescenta.

Mistério. Assassinato no Expresso do Oriente (2017), de Kenneth Branagh, baseado no clássico de Agatha Christie, foi um precursor da leva agora em cartaz – Imagem: AFP/Arquivo e 20th Century Fox/Scott Free

Os lugares sombrios das novelas noir, como poços abandonados e porões úmidos, não apareciam, de fato, na bússola literária da autora, mas ela gostava de um leve toque sórdido, com ganância, luxúria e ciúme sexual. E, dentro desse lado mais confortável do mercado de policiais, o ator Hugh Laurie produziu, este ano, com sucesso, uma série em três partes baseada no romance Por Que Não Pediram a Evans? (Harper Collins), de Christie.

Laurie, além de ter adaptado o texto e dirigido a série, também aparece na tela, ao lado de Paul Whitehouse, Will Poulter e Lucy Boynton, e provou que, um século depois, a pergunta no título de Christie ainda é válida. As estrelas Emma Thompson e Jim Broadbent ficaram felizes em se juntar à diversão de Laurie, porque os filmes de mistério hoje são uma atração garantida.

Com sua forma de suspense claustrofóbica, muitas vezes exagerada, a série compete habilmente com os procedimentos policiais corajosos e o sangue do gênero true crime. Após a pandemia e com os problemas econômicos pairando no ar, os espectadores talvez busquem as certezas de um policial simples e convencional. Então, se nos reunirmos ao redor da lareira, com as evidências expostas diante de nós, o que veremos? Um súbito excesso de reelaborações, na tela, de fórmulas policiais e novas improvisações de clássicos de Agatha Christie.

E há outros fatores que contribuem para a moda da autora: a produção teatral de A Ratoeira, no West End, comemora seu 70º aniversário no fim deste mês, e uma encenação imersiva de Testemunha de Acusação, há cinco anos em cartaz, anunciou estender novamente sua temporada, agora até 2023.

O veredicto é claro para a escritora de policiais estreante Charlotte ­Vassell: histórias de assassinatos são tão populares hoje porque são uma maneira imbatível de analisar a sociedade. “Um assassinato é uma aberração do contrato social. Então, como escritor de crimes, você define a parte da sociedade que deseja estudar e a isola. Na verdade, somos todos enxeridos”, disse ela.

“Meu pai avisou que em tempos de dificuldade as pessoas recorrem a Agatha Christie”, diz o bisneto da autora

O romance de estreia de Charlotte, The Other Half (A Outra Metade), conta a história contemporânea do muro oculto da riqueza por trás de um assassinato em Londres. “Como leitor, você olha para as motivações de todos os personagens e, muitas vezes, se confunde com seus próprios preconceitos. Isso permite que você examine classe e raça”, disse ela, acrescentando que Agatha Christie sempre foi “meticulosa” ao definir os mundos sociais que estava prestes a destruir.

Charlotte Vassell escreveu seu novo policial durante o bloqueio, “como uma fuga”. “Era uma forma de eu me obrigar a levantar de manhã”, diz. E, embora nem todos tenhamos escrito nossas próprias novelas, Prichard suspeita que foram as atribulações dos últimos três anos que levaram leitores e espectadores de volta ao gênero. “Uma das coisas bizarras é como as vendas de livros decolaram com o confinamento”, diz ele. “Meu pai me avisou, no começo de tudo, que em tempos de dificuldade as pessoas recorrem a Agatha Christie, e ele estava certo. Há realmente algo catártico ali, considerando que ela mesma as escreveu depois dos horrores da guerra.”

A receita de um livro policial convincente é mais difícil de inventar do que os fãs imaginam, acrescenta Prichard. Mas para aqueles com filhos que gostariam de tentar há uma oportunidade chegando. Para comemorar o aniversário do sucesso mundial de A Ratoeira, com mais de 28.500 apresentações desde a estreia no West End, em novembro de 1952, estrelada por Richard Attenborough e sua mulher, Sheila Sim, a produção criou o programa Jovens Autores Policiais, projetado para inspirar a próxima geração.

“Esta parceria usará o incrível legado de Agatha Christie para incentivar o amor pela escrita em 600 alunos de origens desfavorecidas”, disse Tim Judge, chefe de programas escolares do fundo. O diretor de cinema Johnson, à frente da florescente franquia internacional de filmes Knives Out, começou exatamente assim, lendo histórias de Agatha Christie quando jovem e, depois, escrevendo seus próprios textos experimentais. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Quem é o culpado?”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo