Cultura

assine e leia

“Que Deus os condene a todos”

Como nós, cineastas, faremos para competir com a ficção do mundo real?

“Que Deus os condene a todos”
“Que Deus os condene a todos”
Em Planeta dos Macacos, Heston descobre a verdade no fim. Bugonia, roteiro revisitado por Lanthimos, explora e disseca as teorias conspiratórias – Imagem: 20th Century Studios e Focus Features
Apoie Siga-nos no

“Que Deus os condene a todos!” Não… A frase não é minha. Nem é clickbait. Ou, quem sabe, seja uma forma de trazer o drama logo de cara. Sigamos sem digressão. Eu devia ter uns 9 anos quando vi Charlton Heston, ajoelhado numa praia deserta, gritando algo mais ou menos assim: “Seus maníacos! Vocês destruíram! Droga! Que Deus os condene a todos!”

E lá estava Heston, na pele do astronauta Taylor, diante da Estátua da Liberdade destruída em O Planeta dos Macacos.­ Tevê desligada e eu não. Em choque. Era só cinema, me diziam. Cresci acreditando nisso. Até perceber que, com o passar das décadas, quem estava tentando imitar esse cinema era a própria realidade. E com louvor.

Sempre tive interesse por filmes mergulhados em “futuros”. Em especial, os que já davam errado antes mesmo de começar. Obras como A Última Esperança da Terra (1971), No Mundo de 2020 (1973) e O Planeta dos Macacos (1968) eram minhas favoritas. Catástrofe ecológica, pandemias, escassez de recursos, tudo embalado com Heston como herói, antes de virar mascote de uma direita armamentista que parecia saída de suas próprias distopias. Talvez ele fosse mesmo um ator de método.

Agora, ao ver Bugonia (2025), novo filme do cineasta grego Yorgos Lanthimos, uma nova reflexão me acertou em cheio. O filme constrói uma sátira em que teo­rias conspiratórias – reptilianos, terra plana, pós-verdade – aparecem perfeitamente articuladas e estruturadas. Tudo ali faz sentido. Não porque o mundo­ do filme é absurdo. É o mundo de hoje, o nosso mesmo, onde esse absurdo foi simplesmente normalizado.

Bugonia faz rir da paranoia, mas também da nossa incapacidade de explicá-la. Não é só alegoria. Pra mim, é autópsia. A partir desse diagnóstico, me veio a pergunta: como nós, cineastas, faremos para competir com a ficção do mundo real?

Um lugar árido, duro, onde discursos de exceção foram se normalizando, a pós-verdade formou coro, teorias das mais absurdas ganham corpo e pensadores. Vivemos uma quebra da quarta parede da realidade. Eu poderia citar Nietzsche, dizendo que hoje “mais importante que o fato é a versão”, mas descobri outro dia que talvez nem essa frase seja dele. Fato que, ironicamente, confirma a própria frase.

Assim estamos. Cada um com sua verdade, sua crença, seu ponto de vista imutável. Teorias de opinião. Sem fatos checados e muitas vezes sem estudos, dados, apenas um achismo vazio. O bem contra o mal.

Como fazer para superar essa ruptura? Eu, particularmente, acho que faltam pontes. Pontes entre as narrativas, entre os lados, entre as bolhas. Porque, sejamos sinceros: se pra gente tudo faz sentido nas nossas narrativas, pra quem está do outro lado também faz.

A questão é que o diálogo só existe quando alguém se dispõe a transpor esse abismo. E como fazer isso, se preferimos ficar no conforto do nosso bunker ideológico?

Enquanto isso, autores negros vêm pensando o futuro com uma nitidez que o cinema luta para acompanhar. ­Achille Mbembe, ao tratar do “futuro negro”, não fala de profecia, mas de sobrevivência num mundo que opera como máquina de produção de mortes, principalmente de negros. A necropolítica é isso: um Estado que decide quem pode viver e quem deve morrer. Uma distopia de carne e osso. Se existe alguém escrevendo o roteiro do mundo contemporâneo, talvez seja Achille.

E, para quem é negro, isso tem mais urgência. Essas pontes são sobrevivência.

Em Anderson Spider Silva (2023), seriado que criei e escrevi, aconteceu algo muito interessante e revelador. Durante uma pesquisa no X, onde eu lia comentários sobre a série, encontrei um rapaz negro, de direita, que adorou o discurso antirracista de uma das personagens, a tia Edith, interpretada magistralmente por Tatiana Tiburcio. Ele elogiava a cena, e dizia que, pela primeira vez, havia visto a dramaturgia tratar de racismo sem “lacração” ou “mimimi”. Ao rever o episódio, a passagem em questão e lembrar que eu havia escrito aquilo, pensei: “Nossa, tudo que tem aqui é, dentro do ponto de vista da direita, lacração e mimimi. Em doses gigantes”. Um discurso político, combativo e de enfrentamento.

Levei alguns dias… até entender a ponte. Não era sobre o que era dito, e sim sobre quem dizia: uma mulher negra, mais velha, que poderia ser tia, mãe ou avó desse rapaz. A personagem definiu a mensagem e a maneira como ela o alcançou, com uma forma muito mais aceitável e amistosa.

Na batalha entre distopia e imaginação, escolho o lado da fabulação

Pronto, ele tinha ali com o que se identificar e poderia, quem sabe, passar aquela ideia adiante. Um cara de esquerda (eu) falando por meio de uma personagem que, no entendimento dele é, alguém da família, de confiança, do afeto. Ponte feita.

Entendi que é preciso, a cada dia, pensar nessas novas estruturas e atravessamentos. Por isso, sigo acreditando no poder do audiovisual. Mesmo nos piores dias, e, creia, não têm sido dias fáceis para quem trabalha na área, o cinema oferece um tipo raro de ligação. Ele nos permite entrar no imaginário do outro, de quem pensa diferente, sem precisar destruir o caminho de volta. Talvez seja uma das poucas ferramentas que ainda restam para restabelecer fontes legítimas de troca de ideias. Não para nos convencer mutuamente, mas para nos permitir enxergar que o outro lado também é uma narrativa.

Entender a narrativa é o primeiro passo para enfrentá-la ou atravessá-la. Talvez a ponte seja nos desligarmos um pouco da arrogância acadêmica ou daquela sensação de quem é dono da patente da verdade.

A disputa pelo futuro é, no fim das contas, uma disputa narrativa. Nessa batalha entre distopia e imaginação, ainda escolho ficar do lado da fabulação. Porque, se deixarmos por conta dos maníacos, sejam de que lado forem, eles destroem tudo.

Penso então em Exu, que ensina que nenhuma narrativa caminha em linha reta. Diz o itã que ele mata um pássaro ontem com a pedra que atira hoje. Imagem bela e distópica. No fundo, o diálogo é essa pedra lançada. Pode demorar para cruzar o ar, desviar do vento e cumprir seu destino.

O audiovisual, quando acerta, faz essa travessia.  Exu, guardião dos caminhos, sabe que ponte só existe quando há movimento, é isso que leva ao encontro. Que aceitemos essa dança do tempo e deixemos nossos caminhos abertos ao diálogo. Laroyê! •


*Diretor e roteirista.

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“Que Deus os condene a todos”’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo