Cultura

Quando os olhos não bastam

O japonês Nobuyuki Tsujii, pianista cego, carrega no coração a magia de paisagens como esta

Tranquilidade surreal. O Templo Dourado sobre o Lago Espelhado remonta 1397. FOto: Oliveiro Pluviano
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Por Oliveiro Pluviano

Kyoto, a antiga capital japonesa, fica a 140 minutos de Tóquio viajando de trem-bala, o Shinkansen do ex-Império do Sol Nascente. Estive lá em fins de outono, com dias que oscilavam entre o frio siberiano e temperaturas mais amenas, com um sol típico do inverno tropical. No avião, que em 26 horas me levou de São Paulo até o aeroporto de Narita, decidi que queria ser tratado como um oriental, de sorte a me acostumar a cafés da manhã à base de peixes e algas, e aos quimonos para o sono nos tatames dos Ryokan, os hotéis tradicionais.

A foto retrata o Kinkaku-ji, o Templo Dourado, construído sobre o Lago Espelhado em 1397 pelo shogun (samurai-chefe do Exército) Yoshimitsu Ashikaga. Os três andares revestidos de ouro desse famoso edifício foram erguidos como maravilhoso local de descanso para a recuperação das fadigas da guerra. Mas o filho de Yoshimitsu o transformou em um templo zen: o ­lugar inspira muita paz e seu espaço atemporal é ideal para a prática da filosofia budista. Mais do que o “castelo” em si, gostei das tonalidades surreais espraiadas entre o vermelho e o amarelo e o cor-de-rosa das pequenas folhas dos áceres japoneses, árvores de no máximo 10 metros de altura.

Funcionárias diligentes varrem das veredas com vassouras de sorgo as folhas caídas, colocando-as em grandes cestos, onde, ao se misturarem, compõem verdadeiras obras de arte, de nuances que vão do dourado ou ocre, e que, não sei por quê, nunca foram imortalizadas em alguma pintura impressionista ocidental. Pena que Claude Monet jamais tenha visitado esse país fabuloso: os áceres no outono e as flores de cerejeira na primavera teriam sido pintados por ele talvez com mais inspiração do que as famosas ninfeias do seu jardim de Giverny.

Nobuyuki Tsujii é o nome do pianista japonês que completa 24 anos em setembro e carrega toda essa magia no seu coração, e não nos olhos, é cego ­desde o nascimento. Nem por isso deixou de se tornar um intérprete excepcional. Van Cliburn, pianista americano, conhecido por ter vencido o Concurso Tchaikovski em 1958 em Moscou, no auge da Guerra Fria, comentou sobre ele, vencedor há três anos do prêmio que leva seu próprio nome: ‘’Milagre é a única palavra para descrevê-lo. Nobuyuki é efetivamente um ato de Deus’’.

Outros pianistas cegos já se firmaram no mundo da música – de George Shearing, a lenda do jazz que morreu no ano passado, ao ‘’Genius’’ Ray Charles –, mas nunca tinham alcançado tamanha excelência intérpretes cegos de Chopin, Beethoven, Bach. O trabalho de um pianista cego é inimaginável: vai do aprendizado em braile da peça musical, ao domínio tátil do teclado, a ‘’sentir’’ sem ver os intervalos mais complicados da partitura. ­Essa vitória de Nobuyuki, assim como a de outro cego, o russo Oleg Akkuratov, estimula o universo dos não videntes a se libertare de seu handicap.

Há dois meses o The Guardian dedicou um artigo ao virtuoso da cítara, também cego, o indiano Baluji Shrivastav, que criou em Londres uma orquestra de 13 pessoas cegas procedentes do Irã, Japão, Nigéria e Líbano. Seu grupo é o ‘Inner Vision’ (Visão Interior) e o seu cavalo de guerra é a canção Love Is Blind (O Amor É Cego), cantada por Victoria Orunwari, vocalista nigeriana clássica, e por Fereshteh Khosrojerdi, uma iraniana que teve de fugir de seu país, onde a família muçulmana a impedia de cantar. A orquestra se apresenta frequentemente no restaurante Dans Le Noir?, com filiais em Paris, Nova York, Barcelona e São Petersburgo. Ali se come na mais completa escuridão, servidos por garçons cegos como o japonês Takashi Kikuchi, que também toca viola na surpreendente e única Inner Vision Orchestra.

Por Oliveiro Pluviano

Kyoto, a antiga capital japonesa, fica a 140 minutos de Tóquio viajando de trem-bala, o Shinkansen do ex-Império do Sol Nascente. Estive lá em fins de outono, com dias que oscilavam entre o frio siberiano e temperaturas mais amenas, com um sol típico do inverno tropical. No avião, que em 26 horas me levou de São Paulo até o aeroporto de Narita, decidi que queria ser tratado como um oriental, de sorte a me acostumar a cafés da manhã à base de peixes e algas, e aos quimonos para o sono nos tatames dos Ryokan, os hotéis tradicionais.

A foto retrata o Kinkaku-ji, o Templo Dourado, construído sobre o Lago Espelhado em 1397 pelo shogun (samurai-chefe do Exército) Yoshimitsu Ashikaga. Os três andares revestidos de ouro desse famoso edifício foram erguidos como maravilhoso local de descanso para a recuperação das fadigas da guerra. Mas o filho de Yoshimitsu o transformou em um templo zen: o ­lugar inspira muita paz e seu espaço atemporal é ideal para a prática da filosofia budista. Mais do que o “castelo” em si, gostei das tonalidades surreais espraiadas entre o vermelho e o amarelo e o cor-de-rosa das pequenas folhas dos áceres japoneses, árvores de no máximo 10 metros de altura.

Funcionárias diligentes varrem das veredas com vassouras de sorgo as folhas caídas, colocando-as em grandes cestos, onde, ao se misturarem, compõem verdadeiras obras de arte, de nuances que vão do dourado ou ocre, e que, não sei por quê, nunca foram imortalizadas em alguma pintura impressionista ocidental. Pena que Claude Monet jamais tenha visitado esse país fabuloso: os áceres no outono e as flores de cerejeira na primavera teriam sido pintados por ele talvez com mais inspiração do que as famosas ninfeias do seu jardim de Giverny.

Nobuyuki Tsujii é o nome do pianista japonês que completa 24 anos em setembro e carrega toda essa magia no seu coração, e não nos olhos, é cego ­desde o nascimento. Nem por isso deixou de se tornar um intérprete excepcional. Van Cliburn, pianista americano, conhecido por ter vencido o Concurso Tchaikovski em 1958 em Moscou, no auge da Guerra Fria, comentou sobre ele, vencedor há três anos do prêmio que leva seu próprio nome: ‘’Milagre é a única palavra para descrevê-lo. Nobuyuki é efetivamente um ato de Deus’’.

Outros pianistas cegos já se firmaram no mundo da música – de George Shearing, a lenda do jazz que morreu no ano passado, ao ‘’Genius’’ Ray Charles –, mas nunca tinham alcançado tamanha excelência intérpretes cegos de Chopin, Beethoven, Bach. O trabalho de um pianista cego é inimaginável: vai do aprendizado em braile da peça musical, ao domínio tátil do teclado, a ‘’sentir’’ sem ver os intervalos mais complicados da partitura. ­Essa vitória de Nobuyuki, assim como a de outro cego, o russo Oleg Akkuratov, estimula o universo dos não videntes a se libertare de seu handicap.

Há dois meses o The Guardian dedicou um artigo ao virtuoso da cítara, também cego, o indiano Baluji Shrivastav, que criou em Londres uma orquestra de 13 pessoas cegas procedentes do Irã, Japão, Nigéria e Líbano. Seu grupo é o ‘Inner Vision’ (Visão Interior) e o seu cavalo de guerra é a canção Love Is Blind (O Amor É Cego), cantada por Victoria Orunwari, vocalista nigeriana clássica, e por Fereshteh Khosrojerdi, uma iraniana que teve de fugir de seu país, onde a família muçulmana a impedia de cantar. A orquestra se apresenta frequentemente no restaurante Dans Le Noir?, com filiais em Paris, Nova York, Barcelona e São Petersburgo. Ali se come na mais completa escuridão, servidos por garçons cegos como o japonês Takashi Kikuchi, que também toca viola na surpreendente e única Inner Vision Orchestra.

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