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Quando o íntimo se torna coletivo

Em O Acontecimento, agora lançado no Brasil, a memorialista francesa Annie Ernaux resgata a história de um aborto ilegal feito na década de 1960

Quando o íntimo se torna coletivo
Quando o íntimo se torna coletivo
Aos 81 anos, a premiada autora começa a aparecer nas apostas para o Prêmio Nobel - Imagem: Ulf Andersen/AFP
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Em seus 40 anos de carreira, Annie Ernaux escreveu exclusivamente sobre si mesma. Algo que, em mãos menos hábeis, poderia sugerir um mero exercício de vaidade ou egocentrismo, funciona em seus livros como uma potente reflexão sobre o mundo. Em O Acontecimento, que chega agora ao Brasil, ela volta ao começo da década de 1960, quando, aos 23 anos, realizou um aborto clandestino e ilegal que quase lhe custou a vida.

O livro narra com delicadeza e precisão essa experiência marcante que, mais do que estar confinada ao plano ­pessoal, reverbera no mundo de hoje, no qual o aborto ainda é um assunto sob discussão.

É com riqueza de detalhes, alguns um tanto gráficos, mas nunca gratuitos, que ela narra o acontecimento. “Pode ser que um texto como este provoque irritação, ou repulsa, ou seja considerado de mau gosto. Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la.”

Partindo da matéria bruta de fatos e pessoas de sua vida, a memorialista transforma o íntimo em político, para usar a famosa expressão cunhada pela jornalista ­Carol Hanisch, no fim dos anos 1960. Ernaux é fruto da geração de 1968, que ela mesma define como “o primeiro ano do mundo”.

Sendo o presente uma consequência das vitórias e frustrações daquele momento, suas memórias nos ajudam a compreender como chegamos até aqui. Em Os Anos, publicado originalmente em 2008, e já lançado aqui, ­Ernaux começa dizendo categoricamente:­ “Todas as imagens vão desaparecer”.

O ACONTECIMENTO.Annie Ernaux. Tradução: Isadora de Araújo Pontes (Fósforo, 80 págs., 54,90 reais)

E, nesse sentido, seus livros são um rico registro – mais do que uma fotografia ou um filme – do passar dos tempos. A partir de suas memórias, ela resgata momentos do passado pessoal que jogam luz sobre um presente coletivo.

Os Anos, por exemplo, funciona como um vasto painel desde seu nascimento até aquele presente do começo do século XXI. Frases, como manchetes de jornal, abrem e encerram a narrativa, dando a ela um sentido de momento histórico. O Acontecimento, assim como O Lugar, também já publicado no Brasil, é mais concentrado em um momento, e disso tira a sua força.

Memorialista consciente, Annie ­Ernaux conhece o poder da literatura e sabe como a sua própria história afetará outras pessoas. “(Se) eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a rea­lidade das mulheres e me acomodando­ do lado da dominação masculina do mundo”, escreve em O Acontecimento.

Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, em 2019, ela disse: “Quando penso em minha vida, vejo minha história desde a infância até hoje, mas não consigo separá-la do mundo em que vivi; minha história se mistura com a da minha geração e os acontecimentos que vivenciamos”.

É nesse campo entre a autobiografia, a sociologia e a história cultural que Ernaux constrói seus textos. Sua relevância reside não apenas na qualidade da escrita, mas no movimento entre as suas próprias memórias e aquelas coletivas e históricas. Ela faz, assim, uma ponte entre passado e presente

Com 81 anos de idade, vários prêmios e reconhecimento, Annie Ernaux é uma das escritoras mais queridas da França, e um nome que começa a aparecer nas apostas para o Prêmio Nobel, nos últimos anos. A adaptação cinematográfica de

O Acontecimento ganhou o prêmio principal no Festival de Veneza de 2021, e está previsto para estrear no Brasil em abril. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Só após vencer o Prêmio Oceanos a portuguesa Ana Teresa Pereira teve um livro publicado no Brasil: Karen. A mesma editora lança agora O Verão Selvagem dos Teus Olhos (Todavia, 112 págs., 54,90 reais), que retoma a personagem Rebecca, tornada inesquecível pelas mãos de Hitchcock.

Escrito para a série O Livro do Disco, da Cobogó, Nara Leão: Nara – 1964 (224 págs., 49,50 reais), do jornalista Hugo Sukman, é um mergulho no álbum de estreia da cantora, lançado em 1964, e na realidade social, política e cultural do País que entrava no ano que não terminou.

Thomas Mann (1875-1955) tinha saído do sucesso Os Budenbrook (1901), quando lançou Sua Alteza Real (Cia. das Letras, 344 págs., 99,90 reais), que acabou por se tornar uma obra mais apagada em sua bibliografia. O livro retorna às livrarias com tradução e posfácio de Luis S. Krausz.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Quando o íntimo se torna coletivo”

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