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Quando o corpo assume a narrativa

A escritora argentina Claudia Piñeiro parte da Doença de Parkinson para construir um romance sobre a moralidade cristã e os complexos laços a unir mãe e filha

Quando o corpo assume a narrativa
Quando o corpo assume a narrativa
Projeto. Claudia parece dialogar com as ficções de Vivian Gornick e Elena Ferrante – Imagem: Mauro Rico/Ministério da Cultura da Argentina
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Elena sabe que a Doença de ­Parkinson já domina o seu corpo. Sabe também que assassinaram sua única filha, Rita. Ao leitor do romance da argentina Claudia Piñeiro cabe seguir o rastro de Elena, que vai a Buenos Aires em busca de respostas sobre a morte de Rita. Sua última esperança é uma mulher que, ela acredita, mal a reconhecerá – Isabel, personagem que carrega o suspense da trama.

A narrativa começa com um passo. Elena ensaia esse pequeno gesto, descrito em minúcias: levantar um pé, movê-lo, fazê-lo descer e repetir o processo com o outro par. O corpo assume a narrativa, cuja temporalidade é dividida pelo intervalo dos comprimidos de Levodopa, remédio usado no tratamento do Parkinson. Mais que nunca, ela precisa que a droga seja eficaz. Elena dará muitos passos naquele dia.

O projeto literário de Claudia ­Piñeiro, que também é roteirista e dramaturga, aparece em sua melhor forma em Elena Sabe. Somos apresentados a um ambiente marcado pela moralidade cristã – por ironia, Rita, que trabalha no colégio paroquial, acaba enforcada no campanário da igreja. A filha de Elena, por hábito e convicção, desviava de uma certa calçada, na qual uma parteira realiza abortos clandestinos.

Elena Sabe. Claudia Piñeiro. Tradução: Elisa Menezes. Morro Branco (157 págs., 59,90 reais) – Compre na Amazon

A relação entre mãe e filha dá vivacidade ao romance. Claudia cria uma dinâmica que foge ao sentimentalismo, e aproxima-se de um vínculo turbulento, como observamos em Afetos Ferozes (1987), da estadunidense Vivian Gornick, ou nos inquietantes laços que unem as mães e as filhas na ficção da italiana Elena Ferrante.

Elena e Rita parecem, cada vez mais, presas não apenas uma à outra, mas a essa doença invasora que, violentamente, toma o corpo da mãe. Sua imagem causa repulsa à filha. Por outro lado, para Elena, Rita é uma mulher disfuncional.

O corpo feminino é sempre alvo de especulações. A patrulha vai dos olhares curiosos que Elena atrai no trem até um exame invasivo realizado para saber se Rita tem, de fato, um útero. Mais adiante, a temática do aborto aparece, ­fugindo do óbvio – e quebrando com as expectativas do leitor.

O romance de Claudia Piñeiro não é um suspense policial clássico. O gênero, aqui, aparece de forma cômica, quase uma paródia. O fascínio está no caminho meticuloso de Elena, na narrativa dominada pela enfermidade e em sua linguagem, um fluxo pujante de palavras e vírgulas. A quem pertence o controle de um corpo? Elena sabe, e o leitor também saberá. •

Publicado na edição n° 1334 de CartaCapital, em 30 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Quando o corpo assume a narrativa’

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