Cultura
Profissão de fé
O Grupo Galpão, uma das mais importantes companhias teatrais do País, celebra os 40 anos de história com uma turnê de três peças de seu repertório


Foi durante a montagem de A Alma Boa de Setsuan, de Bertolt Brecht, em 1982, que quatro jovens atores tomaram uma decisão que teria impacto direto na história do teatro brasileiro. Naquele ano, os alemães Kurt Bildstein e George Froscher, do Teatro Livre de Munique, chegaram em Diamantina, no interior de Minas Gerais, para promover uma série de oficinas.
Ali, Teuda Bara, Eduardo Moreira, Wanda Fernandes e Antonio Edson se conheceram. O desejo comum de fazer um teatro ao mesmo tempo reflexivo e popular conectou-os de imediato e lançou as bases para a criação do Grupo Galpão. Quarenta anos e mais de 1,8 milhão de espectadores depois, a trupe mineira não apenas se mantém ativa como também segue sendo referência da linguagem teatral no País.
“Aquela primeira experiência com Brecht marcou muito a nossa trajetória”, lembra Moreira. “Ele sempre foi um guia e nos orientou a fazer um teatro para o público e com o público, capaz de levar as pessoas a pensarem sobre suas condições políticas, econômicas e sociais.” Não à toa, as primeiras peças, encenadas em sedes de movimentos sociais, sindicatos e praças de Belo Horizonte, causaram incômodo à ditadura militar.
Outro traço fundante foi a aposta no coletivo. Desde o início, o Galpão optou por não ter um diretor residente. Juntos, os atores tomam decisões administrativas e escolhem artistas com quem desejam trabalhar, abrindo espaço para uma saudável oxigenação de ideias. Ao longo dos anos, nomes como Paulo José (1937-2021), Gabriel Villela, Paulo de Moraes, Cacá Carvalho e Yara de Novaes vêm se alternando na direção dos trabalhos com os integrantes do grupo.
“Ser um grupo há 40 anos, passando por várias fases e momentos, é quase uma utopia”, diz a atriz Inês Peixoto
Um terceiro ponto-chave é a assinatura pautada pela pluralidade. A trupe navega com naturalidade do teatro de rua ao palco italiano, flertando com o circo, o cinema, o teatro musical e o teatro realista, da comédia à tragédia. “A multiplicidade de expressões, influências e linguagens deu uma cara muito brasileira ao Galpão”, diz Moreira. Nesses 40 anos, os três pilares permaneceram inalterados. A crença inabalável neles talvez explique a solidez do coletivo e sua resistência às adversidades.
As mais recentes foram as restrições sanitárias. Ao mesmo tempo que levaram o grupo a se aprofundar na linguagem audiovisual, realizando espetáculos até nas redes sociais, a pandemia provocou adiamentos de temporadas, cancelamentos de sessões e instabilidade nos cronogramas. Para piorar, a desidratação dos mecanismos federais de fomento à cultura atrasou a aprovação e a captação de recursos para o projeto comemorativo.
O financiamento tornou-se uma questão sensível, especialmente a partir de 2020, quando a Petrobras encerrou, sem aviso prévio, 18 anos ininterruptos de patrocínio. O fim do apoio fez minguar uma agenda de turnês regulares por todas as regiões do País. “A gente conseguiu se manter a duras penas com apoio de algumas empresas”, diz Moreira. “Mas foi um momento muito difícil.”
Apesar das dificuldades, o 40º ano de vida do grupo será encerrado com uma turnê reunindo três trabalhos-síntese das diferentes vertentes artísticas do grupo, que desembarca, no sábado 3, em São Paulo. De Tempo Somos – Um Sarau do Grupo Galpão (2014) puxa uma celebração das canções e poesias que atravessam o repertório da trupe. A crítica social aliada ao humor é uma das marcas de Till, a Saga de um Herói Torto (2009). Já a Nós (2016) cabe um aprofundamento na experimentação e no diálogo com o teatro contemporâneo. O novo contexto tem, de toda forma, exigido adaptações. Com o objetivo de diminuir custos com carga, por exemplo, o cenário de Till precisou ser enxugado para a turnê paulista. Já o projeto de criação de uma nova sede foi deixado de lado.
Além da capacidade de administrar os percalços, outra explicação para essa longevidade está na intensa relação mantida pelo grupo com seu entorno. Em Belo Horizonte, eles administram o Galpão Cine Horto, um centro cultural com cursos livres em artes cênicas, sala de cinema, núcleos de pesquisa e apresentações. O espaço funciona desde 1998 e, além de estimular novas gerações de artistas, forma plateias. Coube também ao Galpão a criação do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte, com 15 edições já realizadas.
Crítica, música, humor. As peças Till, a Saga de um Herói Torto; De Tempo Somos; e Nós compõem a turnê comemorativa e sintetizam as diferentes vertentes artísticas do grupo mineiro – Imagem: Humberto Araújo, Guto Muniz e Dinho Lacerda
O forte trânsito internacional, que teve início no fim da década de 1980 e levou a trupe a percorrer 19 países até hoje, inclui experiências muito marcantes. A maior delas foi, provavelmente, a antológica montagem de Romeu e Julieta, dirigida por Gabriel Villela, que, no ano 2000, lotou por duas semanas o Globe Theatre de Londres, o centenário palco onde Shakespeare estreou suas principais peças.
Misturando elementos da cultura popular brasileira com o barroco mineiro, a versão era encenada na rua com muita música e toques circenses. “As pessoas nos diziam que havíamos resgatado um lado popular do Shakespeare já esquecido na Inglaterra”, diz Moreira. Doze anos depois, o Galpão voltaria à cidade para uma nova temporada, sendo o único representante brasileiro em um festival no qual companhias de várias partes do mundo encenavam obras do bardo inglês.
Montada originalmente em 1992, essa peça também marcou a entrada de Inês Peixoto na turma. De lá para cá, já se passaram 30 anos e, ainda assim, ela segue como uma das integrantes com menos tempo de casa – a formação atual conta com 12 atores. Mesmo atuando com frequência no cinema e na tevê e participando de projetos paralelos, Inês nunca abandonou sua casa artística. “A gente se reúne e conversa muito para acomodar os desejos de cada um, mas a prioridade é sempre a agenda do grupo”, diz Inês. “Isso tem a ver com uma reflexão sobre a força de um coletivo com uma paixão comum, que é manter esse projeto vivo.”
Enquanto festeja o passado, o Galpão segue a olhar para o futuro. A próxima montagem, prevista para 2023 – a primeira estreia presencial em cinco anos –, será um retorno às origens: um “cabaré brechtiano”. “Tocamos em vários lugares da obra dele e exploramos a forma muito inteligente dele de falar de contradições. Brecht é fascinante – o teatro é fascinante!”, empolga-se Moreira.
O carinho com o qual o ator se refere ao próprio ofício e, em especial, à atuação de seu conjunto, é partilhado por Inês. “Ser um grupo há 40 anos, passando por várias fases e momentos, é quase uma utopia”, completa ela. “Somos uma gente com fé na arte, e é ela que nos faz ter força para manter esse sonho.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Profissão de fé “
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