Cultura

‘Precisamos, cada vez mais, de uma escuta radical das vozes consideradas periféricas’

Lia Rodrigues, há 20 anos sediada na Maré, ocupa o palco com cobertores que remetem à população de rua

Território. Encantado, que estreia no Brasil após uma temporada europeia, foi gestado no mesmo galpão onde chegavam as doações para o enfrentamento da pandemia na comunidade - Imagem: Stephane de Sakutin/AFP e Sammi Landweer
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Há 20 anos, a coreógrafa Lia Rodrigues transferiu a sede de sua companhia para o Complexo da Maré, um conjunto de 16 favelas localizado na região central da cidade do Rio de Janeiro. O impulso para essa mudança, costuma dizer ela, veio de um desconforto que o mundo da dança contemporânea lhe causava. “Para quem eu faço dança?”, tinha passado a se perguntar.

Quem vê Encantado, espetáculo que estreou em dezembro do ano passado, em Paris, fez uma temporada pela Europa e é agora apresentado no Brasil, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, entende a pergunta e intui a resposta.

No palco, há, entre os 11 bailarinos, corpos gordos, magros, brancos, negros e trans. Há ainda dezenas de cobertores que remetem à população de rua. E há, por fim, na trilha sonora, trechos de músicas do povo Guarani Mbya – as mesmas entoadas durante a marcha de povos indígenas, realizada em Brasília, em 2021.

“A questão da diversidade, também por estarmos na Maré, sempre foi presente no grupo. Mas, sim, hoje a companhia é muito mais diversa do que já foi”, diz a coreógrafa, olhando para trás no tempo. Lia relembra, nesse momento da conversa, o encontro com Eliana Sousa Silva, a fundadora das Redes da Maré, que a transformou para sempre. “Até aquele momento, eu sabia que tinha de fazer alguma coisa, como artista cidadã. Mas não sabia o quê”, conta.

Lia nasceu em São Paulo, em uma família de classe média, cursou História na Universidade de São Paulo – sem ter chegado a concluir a faculdade – e formou-se em balé clássico. No início dos anos 1980, foi para a França e, ao voltar, instalou-se no Rio. Foi no Rio que, no início dos anos 1990, criou a própria companhia e depois um reconhecido festival, o Panorama.

Sua carreira ia bem, mas, ao olhar para a cidade e para o País, Lia passou a sentir um desejo cada vez maior de compartilhar com mais gente aquilo que fazia. “O Brasil é um país desigual e racista e a arte não escapa disso”, diz, pontuando os limites da arte para, na sequência, demonstrar seu encantamento com as possibilidades que essa mesma arte carrega.

Desde 2003, é na Associação Redes de Desenvolvimento da Maré, a Redes da Maré, que ela descobre essas possibilidades. A Rede tem cinco eixos de atuação: educação, comunicação, desenvolvimento territorial, segurança pública e arte e cultura. A Lia Rodrigues Companhia de Danças insere-se nesse último eixo e ocupa um galpão de 1,2 mil metros quadrados que, quando foi descoberto por ela e por Eliana, estava completamente abandonado.

Foi nesse espaço que nasceu Encantado. E a diferença, em relação aos demais espetáculos da companhia, é que esse foi gestado durante a pandemia. “Um jornalista me pediu, recentemente, a sinopse. Mas eu não sei qual é a sinopse. Eu só sei contar como o espetáculo foi criado”, diz, antes de iniciar o relato.

Encantado foi criado ao longo de nove meses de 2021, no Centro de Artes da Maré.

Nesse mesmo espaço, tinham lugar, no período, as ações da campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, que incluía doações, e campanhas de vacinação e testagem. “Os dois palcos eram totalmente ocupados por cestas de doações. Havia um entra e sai de caminhões, e a gente ficava ensaiando separados por uma cortininha”, conta ela.

Quando começou a chover lá dentro, a Redes resolveu dar início a outra campanha, essa para trocar o teto da sede e colocar um painel de energia solar. Assim como as outras, também essa foi um sucesso. Ao longo de todo o processo de construção de Encantado, Lia devorava livros para entrar “em estado de criação” e ia, como sempre, deixando o real impregnar corpos e espíritos.

A imagem que, criativamente, inaugurou o espetáculo foi aquela que, após a pandemia, tornou-se ainda mais presente no cotidiano dos brasileiros: a de uma pessoa em situação de rua envolta em um cobertor, com o corpo posicionado de tal forma que não parecia necessariamente humano.

Lia pegou então um cobertor usado no espetáculo anterior, Fúria, e o jogou em cena, para ser trabalhado pelos bailarinos. Conforme o grupo foi se descobrindo com aquele pedaço de tecido, outros cobertores chegaram. Muitos foram comprados no Mercadão de Madureira, autodeclarado “o maior mercado popular do Brasil”. “Fui comprando”, diz, ganhando um ar maroto. “Eram muito baratos e coloridos. Muitos desses cobertores são de fato adquiridos por ONGs.” Em Encantado, 140 cobertores estão em cena.

Há pelo menos cinco anos, a companhia é praticamente 100% financiada por instituições europeias. “A relação de apoios é uma lista desse tamanho”, diz, afastando as mãos, uma para o alto, outra para baixo. Há desde teatros e instituições que financiam suas criações até aqueles que compram os espetáculos depois de prontos.

“Comecei a dançar com 17 anos, e hoje tenho 66. Não penso muito sobre isso, porque é tempo demais. Mas há uma história e uma construção que me possibilitam ter esses apoios”, pondera. “Hoje, eu entendo que toda parceria é uma construção no tempo.”

Sua grande e definitiva parceria é, porém, essa com a Redes da Maré. “Para mim, faz muito sentido eu ser artista nesse território. É um lugar que me afeta e que é afetado por mim”, afirma. Perto do fim da conversa, a coreógrafa, que se diz adepta do verbo “esperançar”, deixa uma pista do que vê, ou sonha, para o futuro: “Precisamos, cada vez mais, de uma escuta radical das vozes consideradas periféricas”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A coreografia da diversidade”

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