Cultura

Por que não tirei meu filme do Cine PE (mas apoio quem o fez)

Acredito que tirar meu curta do festival é perder minha voz. Para alguns, manter suas produções é colocar-se ao lado de discursos criminosos

A seleção do documentário sobre Olavo de Carvalho para o festival causou revolta
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Na última semana, para quem não acompanhou, sete cineastas retiraram seus filmes da competição do XXI CINE-PE, um dos festivais mais tradicionais do país. O grupo justificou a decisão em carta aberta: o festival “favorece um discurso partidário alinhado à direita conservadora e grupos que compactuaram e financiaram o golpe ao Estado democrático de direito ocorrido no Brasil em 2016”.

Este favorecimento estaria expresso, por exemplo, na seleção de “O Jardim das Aflições”, documentário sobre o autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, que muitos veem como uma espécie de guru espiritual da direita.  Não demorou para que alguns críticos chamassem a ação de ‘patrulhamento ideológico da esquerda’, como se os realizadores não aceitassem opiniões divergentes à deles.

Um dos comentários mais raivosos veio do jornalista Marcos Petrucelli, em sua página pessoal de Facebook. Para quem não se lembra, este é aquele que tanta polêmica causou ao fazer parte do comitê de seleção do candidato brasileiro ao Oscar 2017, mesmo tendo, antes de assumir este posto, criticado publicamente o filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, franco favorito à vaga – contrariando a necessária neutralidade de qualquer processo seletivo.

Em seu Facebook, Petrucelli publicou que “esses cineastas só estariam satisfeitos se o festival tivesse selecionado apenas seus filmes e/ou outros com discurso alinhado ao seu pensamento à esquerda”. Mais para frente, no mesmo texto, ele chama os realizadores de ‘acéfalos’ e vê tudo como complô de Kléber Mendonça Filho (!).

Teorias conspiratórias à parte, Josias Teófilo, o diretor de “O Jardim das Aflições”, filme que motivou a deserção, declarou em reportagem publicada pela Folha de S. Paulo, em 12 de maio, que “ficou claro no manifesto que eles fizeram, (que) não pode existir debate com um conservador – o debate só pode se dar entre esquerdistas”.

É fato que vivemos em um país que padece de problema crônico com a alteridade; o outro aparece sempre como o inimigo, o indesejado, cuja voz deve ser combatida ou emudecida. Não à toa, a direita (e não a esquerda) tanto gosta de bater panelas: quem falar mais alto, controla o discurso e sua recepção.

Sou defensor, portanto, de um festival dar espaço a discursos múltiplos. E creio que meus colegas também. Gosto de debater conceitos, colocar minhas certezas à prova e, no caso de estar errado, ser elegante em aceitar. E, de novo, creio que meus colegas também. Estamos no mesmo barco e, se há ideias em jogo (e não gritaria), temos que escutar para não naufragarmos juntos.

Então, se suponho que meus colegas estariam dispostos a discutir ideias e o festival em promover espaço para essa discussão, o que, então, não funcionou? A resposta está em um erro de premissa: o que Olavo de Carvalho representa e profere não é ‘opinião’.

 Sou mais um censor? Talvez. Mas vejamos cinco comentários recentes que o ‘filósofo’ publicou em seu Facebook:

 – Bons tempos aqueles em que os interessados davam o cu sem fazer disso um movimento social. Pelo menos não gastavam nisso verbas do Estado.

–  Cada milímetro que a direita cede à esquerda corresponde a mais meio metro de pica que entra no seu cu.

–  Depois de se foder muito, o sujeito empina o nariz e diz que é orgulho gay.

–  Guerra contra a masculinidade. — Está acontecendo hoje, mas eu vi o começo da coisa muitas décadas atrás. Aos onze anos, minha família estava numa pindaíba que fazia gosto, e minha mãe me mandou passar uns tempos com umas parentes mais abonadas que, como vim a descobrir, tinham profunda ojeriza a tudo o que fosse viril, macho, forte e corajoso. Não aguentei muito tempo. Horrorizado com o processo de boiolização forçada, fugi do conforto para voltar a compartilhar a merda com a minha gentil mãezinha. Meu estômago sofreu, mas minhas bolas salvaram-se.

Para além de sua participação ativa em redes sociais – um álbum da intolerância -, uma reportagem da BBC Brasil, publicada em 16 de dezembro de 2016, ainda relembra como em seu último livro, que eu tive o prazer de não ler, Olavo exalta artistas negros brasileiros que “entendiam que suas remotas origens africanas tinham sido neutralizadas pela absorção na cultura ocidental” e que não ficavam “choramingando coletivamente as saudades de culturas tribais extintas”.

A reportagem da BBC ainda cita: “Em outro episódio, foi criticado ao defender que o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) fizesse um exame “para verificar se sua saliva não transmite o vírus da Aids”, após o parlamentar tentar cuspir em Bolsonaro na votação do impeachment”.

Posso ser ‘acéfalo’ como meus colegas, mas o ideário de Olavo de Carvalho encontra seu lugar ideal não em um festival de cinema, mas, sim, digamos, em uma prisão. Respeitar opiniões pressupõe considerá-las válidas em um contexto democrático. Quando o discurso proferido destrói as bases do direitos universais e constrói-se apenas como disseminação de ódio, as regras do respeito mútuo e democrático já não são mais critérios.

E é isso que meus colegas, que tanto admiro, colocaram em evidência: podemos estar dispostos a conversar, mas não somos obrigados a partilhar do mesmo espaço de alguém cuja popularidade se deve à profissão de ofensas discriminatórias.  Ganhar a vida – e seguidores – fazendo apologia ao racismo, à misoginia e homofobia é fácil: o Brasil tem afinidade histórica com este tipo de discurso.

Difícil é escolher tirar seu curta-metragem de um dos maiores festivais do país, sabendo que isso pode custar-lhes uma carreira. Afinal, como o próprio Olavo diz – também em seu Facebook -, “alguém no mundo vai ao cinema para ver um curta-metragem? Só seus autores e, coitado, o projetista. Saindo batendo pezinho, os nove autores dessas porcarias se livraram do único público que elas teriam a oportunidade de atrair”

Do mesmo modo que acredito que tirar meu filme é tirar minha voz, para meus colegas manter seus filmes é colocar-se lado a lado a discursos criminosos. Divergimos na ação, concordamos na análise.  A esquerda está, sim, disposta ao debate; os cineastas estão, sim, dispostos ao debate. Mas contra o ódio não há diálogo. Há luta.

*Felipe Poroger é diretor do filme “Aqueles Anos em Dezembro” e responsável pelo Festival de Finos Filmes, mostra paulistana de curtas

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