Cultura

Poema marginal

Vivam ou não seus personagens, poetas como Zizo, de ‘Febre do Rato’, estão sempre fadados à incompreensão, ao exercício solitário e ao descompromisso com a ordem

Zezo, o poeta anarquista interpretado por Irandhir Santos em A Febre do Rato, com a bela Eneida (Nanda Costa)
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No turbilhão da avenida principal, em direção ao trabalho e aos horários marcados, encontro sempre pessoas com papéis rabiscados perguntando se gosto de poesia. Como 99,9% dos passantes, acelero o passo para não ter o caminho bloqueado nem ser acusado por meu suposto descaso poético.

Quando a abordagem é inevitável, aponto para o pulso sem relógio para simular meu compromisso com o tempo. Nada contra sua poesia, penso sempre em dizer; mas ela me surgiu na hora errada.

Sem arranhão sobre a consciência, fatalmente passaria reto se topasse com Zizo, o poeta anarquista interpretado por Irandhir Santos em Febre do Rato, de Cláudio Assis. Mas correria o risco de ser acordado com um alto-falante à beira de minha janela, conclamando eu e meus vizinhos a tomar poesia, nos libertar das amarras do mundo concentro ou a (pelo menos) me esforçar para saber o que se passa logo abaixo do meu prédio – que, longe do mangue da Recife filmada por Assis, também está rodeado pela truculência, pelo descaso, pelos dejetos e pela prostituição.

Em preto e branco, a truculência, o descaso, os dejetos e a prostituição parecem caber na tela como cor local. O cenário poderia ser encontrado nas cercanias de qualquer grande cidade brasileira. O que parece deslocado é o sujeito a espalhar exemplares de seu fanzine de protesto ou empunhar o alto-falante pelas ruas – como parecem deslocados os poetas a oferecer versos nos turbilhões das horas marcadas.

O poeta, escreveu Fernando Pessoa, é um fingidor que finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. É uma profissão de fé desoladora e sem outorga, cujas palavras muitas vezes não chegam perto sequer de uma única biblioteca ou livraria. Viva ou não seu personagem, o poeta está sempre fadado à incompreensão, ao exercício solitário, ao descompromisso com a ordem e os acertos e com as horas marcadas. Poucos viveram como escrevem, e da prateleira de poetas brasileiros quem chegou mais perto da própria verve foi Vinícius de Moraes – isso quem garante é Carlos Drummond de Andrade, o funcionário público aparentemente bem comportado que se tornou o maior poeta nacional. Para ele, Vinícius (beberrão, mulherengo, ora preguiçoso) era o único parceiro de verso a viver o que escrevia.

Tivesse encontrado Zizo, é possível que Drummond estendesse a referência. Afinal, o que pode ser mais poético do que fabricar versos para o amigo coveiro enamorado de um travesti? (um coveiro que se diz ateu e acende velas aos santos de quem não é devoto). Ou rastejar para a amiga nova que lhe censura o corpo que promete com o olhar? Ou espalhar versos como única forma de se combater a velha pobreza material, palpável e insensata? Ou montar uma banheira/piscina dentro de um tanque de casa para se divertir com as velhas da vizinhança? Ou ouvir constantemente, apesar dos aplausos: “te ouço, mas não te entendo”; “não gosto de poesia”; “você é só um mimado”; “só um marqueteiro”; “você está é muito doido”.

A dor que Zizo deveras sente talvez seja inverossímil, daí a incompreensão – como o amor não-correspondido por Eneida, a menina-guerra interpretada por Nanda Costa.

Em Poesia, filme do sul-coreano Chang-dong Lee, Mija (Jeong-hee Yoon) é uma empregada doméstica que busca beleza onde só existe cinismo, morte e alienação. A busca pelo objeto transcendental – a poesia que tenta aprender na marra – é medida pela discrepância com as prioridades do mundo real, insensível, reacionário, escravo do tempo e da ordem.

Mas em Febre do Rato, a busca da poesia é a busca do sujeito/objeto incrustrado no próprio espaço, um espaço de desordem e incompreensão – e já percorrido pelo mangue-beat, pelo frevo, pelo maracatu e agora pelo cinema de Cláudio Assis. É ali, numa cidade cosmopolita e esquecida, fervilhante e tediosa (como tantas), lascíva e sórdida, que brotam os encantos mais improváveis: do dejeto que alimenta o mangue ao desejo de espernear – e gritar pelo direito de errar, mesmo sob o risco de ser mecanicamente espancado por adjetivos como “chocante” ou “polêmico”.

No turbilhão da avenida principal, em direção ao trabalho e aos horários marcados, encontro sempre pessoas com papéis rabiscados perguntando se gosto de poesia. Como 99,9% dos passantes, acelero o passo para não ter o caminho bloqueado nem ser acusado por meu suposto descaso poético.

Quando a abordagem é inevitável, aponto para o pulso sem relógio para simular meu compromisso com o tempo. Nada contra sua poesia, penso sempre em dizer; mas ela me surgiu na hora errada.

Sem arranhão sobre a consciência, fatalmente passaria reto se topasse com Zizo, o poeta anarquista interpretado por Irandhir Santos em Febre do Rato, de Cláudio Assis. Mas correria o risco de ser acordado com um alto-falante à beira de minha janela, conclamando eu e meus vizinhos a tomar poesia, nos libertar das amarras do mundo concentro ou a (pelo menos) me esforçar para saber o que se passa logo abaixo do meu prédio – que, longe do mangue da Recife filmada por Assis, também está rodeado pela truculência, pelo descaso, pelos dejetos e pela prostituição.

Em preto e branco, a truculência, o descaso, os dejetos e a prostituição parecem caber na tela como cor local. O cenário poderia ser encontrado nas cercanias de qualquer grande cidade brasileira. O que parece deslocado é o sujeito a espalhar exemplares de seu fanzine de protesto ou empunhar o alto-falante pelas ruas – como parecem deslocados os poetas a oferecer versos nos turbilhões das horas marcadas.

O poeta, escreveu Fernando Pessoa, é um fingidor que finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. É uma profissão de fé desoladora e sem outorga, cujas palavras muitas vezes não chegam perto sequer de uma única biblioteca ou livraria. Viva ou não seu personagem, o poeta está sempre fadado à incompreensão, ao exercício solitário, ao descompromisso com a ordem e os acertos e com as horas marcadas. Poucos viveram como escrevem, e da prateleira de poetas brasileiros quem chegou mais perto da própria verve foi Vinícius de Moraes – isso quem garante é Carlos Drummond de Andrade, o funcionário público aparentemente bem comportado que se tornou o maior poeta nacional. Para ele, Vinícius (beberrão, mulherengo, ora preguiçoso) era o único parceiro de verso a viver o que escrevia.

Tivesse encontrado Zizo, é possível que Drummond estendesse a referência. Afinal, o que pode ser mais poético do que fabricar versos para o amigo coveiro enamorado de um travesti? (um coveiro que se diz ateu e acende velas aos santos de quem não é devoto). Ou rastejar para a amiga nova que lhe censura o corpo que promete com o olhar? Ou espalhar versos como única forma de se combater a velha pobreza material, palpável e insensata? Ou montar uma banheira/piscina dentro de um tanque de casa para se divertir com as velhas da vizinhança? Ou ouvir constantemente, apesar dos aplausos: “te ouço, mas não te entendo”; “não gosto de poesia”; “você é só um mimado”; “só um marqueteiro”; “você está é muito doido”.

A dor que Zizo deveras sente talvez seja inverossímil, daí a incompreensão – como o amor não-correspondido por Eneida, a menina-guerra interpretada por Nanda Costa.

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Mas em Febre do Rato, a busca da poesia é a busca do sujeito/objeto incrustrado no próprio espaço, um espaço de desordem e incompreensão – e já percorrido pelo mangue-beat, pelo frevo, pelo maracatu e agora pelo cinema de Cláudio Assis. É ali, numa cidade cosmopolita e esquecida, fervilhante e tediosa (como tantas), lascíva e sórdida, que brotam os encantos mais improváveis: do dejeto que alimenta o mangue ao desejo de espernear – e gritar pelo direito de errar, mesmo sob o risco de ser mecanicamente espancado por adjetivos como “chocante” ou “polêmico”.

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