Pode ser especial

O que importa não merece ser banalizado. Uma celebração em família, com boa gastronomia, é um desses momentos eternos

Minha filha menor nem sequer possui o último modelo de smartphone. Para evitar bullying diz que adotou uma postura vintage. Ilustração: Ricardo Papp

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Nunca se sabe. Vai depender do estilo de cada uma. Pode ser que uma delas, em uma festa de Natal, no momento de brindar o nascimento do menino do presépio, peça a palavra e, como nos bons filmes da turma do Dogma, comece a mandar pera em um discurso que me destrua, me humilhe na frente de todos.

A probabilidade é pequena, mas existe. Estou falando sobre minhas filhas. Admito que não dei a elas a educação que sonhei ou que talvez elas tenham sonhado. Lacunas imensas ficaram abertas e temo ser cobrado, no meio de uma noite, por um sonho ou coisa pior.

Darei a seguir alguns exemplos.

Jamais levei nenhuma delas para esquiar em Aspen ou Vail, se isso é possível de se imaginar. A menor nem sequer possui o último modelo de smartphone. E para não ser vítima de bullying inventa histórias: diz que decidiu adotar uma postura vintage diante da tecnologia. Nos últimos dez anos não fomos sequer 20 vezes para a Disney.

Como não poderia deixar de ser, essas crianças acabaram se tornando pessoas com estranhas preferências, tipo Paris a Miami.

Pois chegou o dia que a menor completou 15 anos. Feriado em São Paulo. Fiz reserva para o almoço no Parigi. Considerando as festas que algumas amigas têm feito, talvez eu devesse ter fechado o Parigi por uma semana.  Não o fiz. Fomos em poucas pessoas. As que de fato importavam. E a maioria nunca havia estado no Parigi, que durante o feriado adquire uma atmosfera muito especial, sem gravatas e bravatas empresariais.  Cheguei aonde eu queria e agora deixo todas as brincadeiras de lado: sempre tomamos muito cuidado, eu e as mães de minhas filhas, para não banalizar o que pode ser especial.


A primeira vez no Parigi tem um sabor muito particular que foi devidamente saboreado e apreciado pelo pequeno grupo familiar. Mesmo para mim, que já estive no restaurante muitas vezes, aquele dia foi diferente. Uma terrine de foie gras abriu o almoço. Todos sabíamos que essa terrine é um prato refinado. A última vez que havíamos provado uma muito boa fora em Paris. E aquela estava no mesmo nível, o que nos trouxe a lembrança do local onde havíamos comprado, do dia em que a provamos em meio a uma formidável confusão gastronômica no quarto de um hotel.

Os pratos vieram, assim como as bebidas, e não deixamos em nenhum momento de manifestar uma verdadeira alegria por estarmos juntos, comemorando os 15 anos da pequena. Foram sete pratos e todos estavam impecáveis.

A galinha-d’angola que dividi com minha sogra foi a melhor que tenho lembrança de ter provado. Uma matéria-prima espetacular tratada com a devida reverência e competência.

Um risoto com camarões e tomates frescos já estava ótimo só de se ver. Você consegue perceber isso? Nada tem a ver com a apresentação do prato. Batemos o olho e podemos ter 90% de certeza de que todos os demais sentidos serão contemplados  e ficarão alegres.

Massa recheada com haddock foi o pedido da aniversariante. Temi pela potência do peixe ao redor de ingredientes delicados. Para combater esse tolo temor existe um chef. Eric Berland equilibrou tudo e deixou o sabor crescer.

Antes da sobremesa olhei para fora e percebi que mais um dilúvio de verão castigava a cidade. Mas nós estávamos protegidos, bem acolhidos. Nada naquele momento poderia nos tirar a paz e o sorriso que fixou residência na mesa. Um bom vinho de sobremesa, um delicioso bolo de chocolate e lá fora a chuva foi se acanhando.

Voltarei ao Parigi com as meninas. Não já. Em outro momento que possa vir a ser, mais uma vez, muito especial.  E o smartphone vai ficar para outra vez, quem sabe aos 21 anos.

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