Cultura

Pisotearam as flores do seu jardim

O que vem acontecendo no mundo me fez lembrar de um texto cuja autoria, sem muita certeza, atribuo a Eduardo Alves da Costa

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Se alguém chegar ao fim desta crônica julgando-me xenófobo, tenho o direito de acreditar que não entendeu nada do que aqui foi declarado. Portanto, e para desautorizar juízes apressados, começo afirmando que sim, queremos sócios, de patrões é que não temos necessidade.

O que vem acontecendo no mundo me fez lembrar de um texto cuja autoria, sem muita certeza, atribuo a Eduardo Alves da Costa. Não me lembro da mensagem, para usar a linguagem de Roman Jakobson, mas o referente continua bem claro na minha memória. Portanto, altero o discurso mantendo-me fiel ao assunto.

O jardim de sua casa era belo de causar inveja, e, na primeira noite, você dormia tranquilamente em sua cama quando alguns de seus vizinhos abriram seu portão e, mesmo sob os protestos de seu cão, pisotearam as flores de seu jardim. Na manhã seguinte, você viu aborrecido o estrago, mas não quis se indispor com os vizinhos e nada disse.

Na noite seguinte, irritados com o barulho de seu cão quando invadiram seu jardim, abriram novamente o portão e mataram o cão. Você só foi descobrir isso na manhã seguinte. Mas nada disse, pois praticava a política de boa vizinhança. A qualquer preço.

Animados pelo sucesso das duas noites anteriores, seus vizinhos quebraram a corrente com que você quis trancar o portão, arrebentaram a porta de entrada e invadiram sua casa. Roubaram tudo que puderam, sentindo-se muito fortes, o que lhes dava a sensação de impunidade.

E agora não adianta mais você querer reclamar, pois roubaram-lhe também a voz.

Não, não sou um nacionalista do tipo tradicional, tampouco um ufanista ingênuo, mas há alguns pontos que me parecem universais e em cujo respeito se baseiam as relações entre os países. Sem respeito à soberania alheia, voltamos à selvageria. E uma nação que promove ações não civilizadas, não tem crédito para liderar outras nações.

Conheço pessoas que justificam a espionagem. Com base em que princípio eu não sei, mas suspeito que seja no princípio do direito do mais forte. Está na hora de ler a metáfora do troglodita, daquelas Cartas Persas, de Montesquieu. E você, que joga baralho, como se sente ao descobrir que seu adversário tinha todas as cartas marcadas?

Assim como as pessoas, também as nações, mutatis mutandis, têm direito à privacidade. E cabe uma pergunta àqueles que vêm censurando o governo brasileiro por ter reclamado e continuar reclamando em foro internacional contra a intrusão de outras nações em assuntos que só a nós dizem respeito. Vocês, que acham muito justo o mais forte ter o direito de espionagem contra o mais fraco, não hão de ser as pessoas mais fortes de sua cidade. Vocês ficariam calados se amanhã alguém, durante seu sono, invadisse sua casa (com todo o direito da força) para bisbilhotar o que você tem, o que fazem seus filhos, como dorme sua esposa ou seu marido?

Se a resposta for afirmativa, bem, então não temos mais o que conversar. Botar as preferências e interesses partidários acima dos interesses nacionais me parece de uma estupidez inominável.

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