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Pianistas e negros

Como Amaro Freitas, Hercules Gomes e Jonathan Ferr, nascidos na periferia, têm ressignificado o instrumento no País

Pianistas e negros
Pianistas e negros
Efeitos sonoros. O álbum Y’Y, de 2024, rendeu ao pernambucano Amaro de Freitas, de 34 anos, diferentes prêmios e turnês pelos Estados Unidos e Japão – Imagem: Rita Carmo
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O pianista pernambucano Amaro Freitas conta que, em vários dos lugares aos quais chegava para se apresentar durante o lançamento de seu primeiro álbum, Sangue Negro (2016), era confundido. Pelo fato de ser negro, o tomavam, muitas vezes, por percussionista – e não pelo pianista que era. Passada uma década, não só esse tipo de confusão deixou de acontecer como a negritude passou a ser um elemento significativo em sua trajetória.

Não à toa, na semana da Consciência Negra, Amaro foi convidado para fazer uma apresentação no Instituto Moreira Salles Paulista, inspirada no filme Shaft (1971), de Gordon Parks (1912–2006), ativista e fotógrafo que revolucionou o retrato das comunidades negras nos Estados Unidos.

Amaro é hoje reconhecido como um dos principais pianistas brasileiros. Com o exuberante álbum Y’Y (2024), ele ganhou desde o Prêmio da Música Brasileira até o “Disco do Ano” da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). O trabalho, apresentado em turnês pelos Estados Unidos e pelo Japão, recebeu ainda elogiosas resenhas em jornais como The New York Times e The Guardian.

No disco, Amaro usa a técnica chamada piano preparado, que consiste na colocação de objetos dentro do instrumento para criar efeitos sonoros. Seu objetivo era obter um som que remetesse à Amazônia. “Esse disco é sobre a identidade brasileira”, diz o músico.

Os três foram formados a partir do contato com o teclado e, quando crianças, tocaram em igrejas de bairro

No mês que vem, ele lança o álbum de inéditas Criolo, Amaro & Dino, reunindo piano, rap e soul, com os cantores Criolo e Dino d’Santiago – este último português de ascendência cabo-verdiana. O disco mescla influências do rap, jazz, ritmos brasileiros e música tradicional de Cabo Verde.

Amaro faz parte, ao lado de Hercules Gomes e Jonathan Ferr, de uma nova geração de pianistas negros que tem se destacado. Os três têm em comum o fato de virem de uma realidade social onde rea­lizar o sonho de tocar piano, um instrumento caro e complexo, exigiu deles grande determinação.

Criado em Nova Descoberta, na periferia do Recife (PE), Amaro Freitas, de 34 anos, foi levado aos 12 anos pelo pai, que trabalhava como pedreiro, para tocar no grupo musical do qual fazia parte na igreja Assembleia de Deus. Foi o próprio pai que ensinou ao filho os primeiros acordes no teclado.

Foi, porém, ao ouvir o pianista de jazz Chick Corea que Amaro “pirou” no instrumento e resolveu que queria ir para o conservatório de música da cidade. Com o salário como atendente de telemarketing, ele pagou seus estudos de música. Depois, passou a tocar na noite e, com os cachês, bancou a faculdade de Produção Fonográfica.

Ele acreditava que, com esse curso, estaria mais bem preparado para gerir a carreira. Ainda hoje lembra perfeitamente de seu mantra na época: “A realidade triste da periferia é que não se pode errar”. Depois de Sangue Negro, vieram os álbuns Rasif (2018), Sankofa (2021) e então o aclamado Y’Y .

Novos trabalhos. Hercules Gomes, de 45 anos, nascido na Grande Vitória, acaba de lançar Bremen Solo, gravado na Alemanha, e Jonathan Ferr, de 38 anos, nascido em Madureira, o álbum Lar – Imagem: Victória Borbolato e Dani Gurgel

Foi também da periferia que veio ­Hercules Gomes, de 45 anos. Gomes cresceu em Porto Novo, bairro de Cariacica, na Grande Vitória (ES), com a mãe trabalhando como costureira e o pai como funileiro – mas o pai também tocava violão.

Quando tinha 13 anos, começou a tirar umas notas de um teclado que tinha sido esquecido em sua casa por um conhecido da família. Passadas duas semanas, já estava tocando na igreja católica do bairro. Não demoraria para que passasse a participar de bandas de baile e pagode.

Aos 19 anos, ele parou tudo para se preparar para o vestibular. “O ensino que tinha na escola pública era muito ruim até ali”, lembra. “Precisei me dedicar em tempo integral para tentar ingressar na faculdade.” O esforço terminou na aprovação para o curso de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Um ano depois de ter entrado na universidade, conseguiu, com cachês e aulas particulares, realizar o sonho de adquirir um piano acústico. Ele lembra que, no começo da carreira, a mãe chegou a comprar para ele, em 24 parcelas, um teclado.

Seu primeiro álbum autoral, Pianismo, saiu em 2013. Desde então, tem feito recitais e lançado trabalhos com obras de compositores brasileiros nascidos no século XIX: Ernesto Nazareth (1863–1934), Chiquinha Gonzaga (1847–1935), Amélia Brandão Nery, a Tia Amélia (1897–1983), e Marcelo Tupinambá (1889–1953).

Este mês, Hercules Gomes dá um novo salto na carreira, com o lançamento do disco autoral Bremen Solo, gravado ao vivo em março, em Bremen, na Alemanha. O registro foi feito em piano solo, com arranjos seus e contou com o apoio do produtor alemão Thomas Köeke.

“Já tinha tocado no exterior, mas em Bremen foi a primeira vez em que apresentei minhas próprias composições”, diz, sobre o novo álbum. Hercules Gomes mistura a linguagem erudita com a popular em músicas que revelam influências diversas, do jazz aos ritmos brasileiros, como o choro.

A mistura entre diferentes estilos musicais, o toque afro-brasileiro e o virtuosismo são comuns ao trio de artistas

Assim como Gomes, o terceiro nome da trinca, Jonathan Ferr, de 38 anos, tem como marca a mistura de gêneros – indo do jazz e neosoul ao rap e música eletrônica. “Adoro essa provocação”, diz ele, que lançou, em setembro, seu quarto disco, Lar, uma expansão do que ele chama de urban jazz. No disco, Ferr, que é também cantor, reafirma sua maneira de tocar piano, com fusões de estilos e improvisos.

Criado numa família pobre no Morro da Congonha, em Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro, ele frequentou a igreja evangélica, levado pelos pais, onde recebeu a influência do gospel, gênero que também se tornaria presente em sua carreira. Aos 9 anos, começou a tocar teclado e diz ter se reconhecido negro ouvindo Racionais MC’s, já adulto.

Na infância, vendia água sanitária e cloro pelas ruas. Na adolescência, resolveu vender jornal para pagar um curso na Escola de Música Villa-Lobos, porque seus pais não tinham mais condições de bancar as aulas. Ao saber que o garoto trabalhava, um professor conseguiu uma bolsa para ele. Mais tarde, faria faculdade de Música na Unirio e, assim como Amaro, chegou a trabalhar em telemarketing para conseguir se bancar.

A origem social, no caso de todos eles, acabou por forjar de forma direta a relação que têm com o instrumento. Amaro, Gomes e Ferr foram formados, na infância, a partir do teclado – muito mais barato e acessível que o piano – e nas igrejas de diferentes denominações que têm, nas periferias, um papel de acolhimento e sociabilidade.

Hoje, a partir de diferentes estilos musicais, do virtuosismo lapidado por muita dedicação e do inconfundível toque de ancestralidade afro-brasileira, os três dão novas feições ao instrumento no País. •

Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pianistas e negros’

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