Cultura

Philomena

Ao fim da sessão, lembrei de quantas Philomenas reais tive a chance de conhecer no jornalismo. E resolvi recontar suas pequenas grandes histórias. Por Matheus Pichonelli

Os personagens de Setev Coogan e Judi Dench no filme Philomena
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Quando criança, sonhava em ter uma banda. Ou em jogar no time da cidade, a Ferroviária. Como não tinha voz nem perna, restava uma condenação: relatar, em verso ou prosa, a frustração de não ter sido um talento nem da música nem da bola. E comecei a desconfiar, já na adolescência, que escrever não era um dom, mas o ofício dos resignados.

Perto dos 18 anos, tive de escolher, meio sem convicção, o curso para o qual prestaria vestibular. Fechei os olhos e assinalei “jornalismo”. Parecia um caminho natural: gostava de histórias ainda não escritas, gostava de escrever e estava cansado de não ser ouvido (ou lido). Imprimia crônicas sobre futebol, crises políticas e existenciais e mostrava para amigos e familiares. A comoção causada pelos textos era sempre a mesma: nenhuma.

Com um diploma de jornalista, pensava, eu finalmente seria dono das minhas histórias. Faltava um detalhe: aprender a ouvir. Foram anos de confusões, inconsistências e imprecisões até perceber que as histórias não eram minhas, mas de quem as contava; que as interferências ou firulas do autor mais atrapalham do que ajudam; e que, diferentemente da ficção, espécie de nirvana do ofício diário, as histórias reais não precisam ter começo, meio ou fim: estão sempre em construção, em conflito e em contradição – como seus personagens.

Por isso quase sempre fazemos relatos, quase nunca narrativas. E esses relatos, com raríssimas exceções, não mudam a vida de ninguém. No máximo serviam para embrulhar peixe no dia seguinte (agora, com os tablets e edições eletrônicas, nem isso). Não é de se estranhar que minha primeira grande crise na profissão aconteceu quando vi o resultado de uma semana de trabalho ser picotado e servir como bandeirinha de festa junina na quermesse da cidade dos meus avós.

Tamanho desprezo sobre o que juramos ser realmente importante para o leitor explica, talvez, um certo instinto de preservação da espécie: jornalista só anda junto. Quando dois ou três estão à mesa, ganha vida uma profusão de relatos sobre espírito público, bastidores de apuração e comentários só aparentemente entediados sobre plantões ou proximidade com autoridades ou artistas. Quem está à mesa sempre fica com a impressão de que só jornalista neste mundo é feliz, mas basta reparar nas olheiras, na fala frenética e na dependência de aparelhos eletrônicos para entender o que é discurso e o que é autoengano: estamos sempre tentando nos convencer de que o ascetismo vale a pena.

Nessa bolha de retroalimentação, o exercício de autoconvencimento fatalmente leva ao desencanto (e afastamento) do mundo real. Lá as pessoas não parecem dispostas a debater o que supomos ser realmente importante: a manchete do dia, a chamada de capa apimentada, o post do colunista reacionário, a declaração do ministro, a irritação da presidenta, os arranjos eleitorais, a resenha do filme em cartaz ou os alertas de que a economia uma hora vai travar. No mundo real, as pessoas repetem bordões, leem best-sellers, esperam finais felizes, reclamam dos impostos, falam da novela, discorrem sobre receitas de bolo, sobre a vida da vizinha, a escola dos filhos. São reais, enfim.

Por isso quem trabalha ou pretende trabalhar com jornalismo tem chance de se identificar mais com Martin Sixmith (Setev Coogan) do que com Philomena (Judi Dench) no filme homônimo do britânico Stephen Frears (mesmo diretor de A Rainha) indicado a quatro prêmios no Oscar, incluindo melhor filme e melhor atriz. Philomena é a história de quando dois mundos se encontram. Martin é um jornalista inglês consagrado, ex-correspondente da BBC em Washington, e está desempregado após anos apegado a uma crença: a de que não relatou apenas fatos, mas participou da História.

Os anos em que frequentou o ciclo do poder o transformou, no entanto, em um sujeito, digamos, pouco maleável. Rude, ele não sabe lidar com atendentes nem sabe circular em ambientes pouco politizados. Ainda assim, para sobreviver, aceita escrever um artigo para um tabloide sensacionalista sobre uma mulher que há 50 anos tenta reencontrar seu filho. A transição entre o noticiário nobre e o jornalismo piegas leva o personagem a se questionar sobre o seu ofício: que direito alguém tem de expor a vida de uma pessoa? Qual o interesse público sobre um drama pessoal?

Em uma das cenas, ele se refere a Philomena, uma “velhinha irlandesa”, católica de fé cega e ingenuidade irritante, como um exemplar do leitor médio desprezado por ele. (A fé é um ponto-chave da história, já que Philomena foi criada em um convento no qual tem origem a sua tragédia). Mas Martin tem o filme todo para, em meio à apuração, fazer novas perguntas, desta vez sobre ele. Em que medida ele interfere na história? Quem concedeu a ele o direito ao pré-julgamento? Qual o problema, afinal, em alguém seguir uma religião na era da racionalidade? Isso faz dela uma pessoa menos em paz? Uma alienada? A ausência de referências dessa pessoa desautoriza as suas referências históricas e intelectuais? (Não deixa de ser um filme sobre intolerância e intolerâncias, mesmo assunto de Alabama Monroe, que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro).

A busca pelas respostas é reveladora.

Ao fim da sessão, lembrei de quantas Philomenas conheci graças ao jornalismo e, como quem busca uma justificativa para provar que valeu a pena não ser músico, jogador ou poeta, resolvi recontar quatro dos casos que mais me marcaram. Por exemplo. Em maio de 2008, tive a chance de falar por telefone com uma Philomena de sotaque paulista do interior. Ela tinha cerca de 70 anos, era paciente de um hospital psiquiátrico e passou a maior parte da vida (42 anos) longe dos filhos. Fora internada nos anos 60 após sofrer surtos psicóticos. Em 1971, quando recebeu alta de um hospital de Ribeirão Preto (SP), ninguém foi buscá-la. Foi obrigada, assim, a prolongar o período de internação. O marido, que se casara com outra mulher, tinha dito aos filhos que a mãe estava morta. Muitos anos depois, uma equipe médica da rede pública de São Paulo, tema da matéria que eu escrevia com a minha amiga Cíntia Acayaba sobre saúde mental, ajudou a mulher a localizar os filhos, que tomaram um susto aos descobrir que a mãe estava viva. (Como ela, as equipes haviam feito a ponte com as famílias de 650 pacientes de hospitais psiquiátricos entre 2004 e 2008). Era uma história que só poderia existir na ficção. A chance, diria Philomena, era uma em um milhão. Mas era real: ao conversar comigo, por telefone, a mãe me contara, em um relato confuso, que tomara um susto ao visualizar os três filhos perto dos 50 anos. Achava que eles ainda fossem bebês. Era o enredo com um final feliz. A realidade, no entanto, é cheia de adendos Quando a reportagem foi publicada, comecei a receber ligações insistentes de um genro da mulher. Ele queria minha ajuda para contar a mesma história para o Gugu e, se possível, pedir um dinheiro a ele para ajudar nos custos em casa com a nova moradora. Para a mulher, a paciente era a mãe que renascera; para ele, era apenas a sogra. E uma boca a mais na mesa.

Outra Philomena que me veio à memória foi a secretária de uma paróquia de Paranaguá (PR) de onde um padre certa vez se amarrou em centenas de balões, saiu voando e jamais voltou. O episódio virou piada pelo mundo, quase um símbolo da estupidez humana. Mas tinha um fundo humano naquela história: aquele padre, contou a secretária, tinha um sonho de fazer daquela paróquia um ponto de descanso, físico e espiritual, para caminhoneiros que se dirigiam ao porto da cidade. O centro de descanso anexo à paróquia, pensava o padre, seria uma arma de combate à exploração sexual da zona portuária. O voo com os balões era, portanto, uma forma de receber holofotes – e patrocínio – para a causa. Foi o que a secretária, que jejuava todos os dias pelo padre, me relatou, entre lágrimas, por telefone. O sonho do pároco havia submergido, mas ela não deixou de jejuar por ele até seu corpo ser encontrado, o que só aconteceu muito tempo depois.

Lembrei também de um rapaz com quem conversei no centro de São Paulo para fazer um perfil dos usuários de crack da região. Tomamos café, falamos de futebol e ele se abriu: falou sobre tudo o que havia deixado para trás por causa das drogas. Ao fim, desejamos sorte um para o outro, prometi retornar outras vezes ao local para outros cafés e voltamos às nossas vidas. Uma ex-professora do rapaz leu a reportagem, contatou a família e uma irmã do garoto me achou pelo Orkut. Ela queria saber onde é que eu o tinha visto. Dei as orientações e passei um tempo sem receber notícias. Dois anos depois, ela voltou a me procurar, desta vez pelo Facebook. Queria contar que o meu entrevistado havia sido encontrado no local indicado, que voltara para casa, estava bem e livre das drogas. E, salvo das drogas, era um pai dedicado de duas crianças.

Outras Philomenas se transformam em amizades assim que desligamos o gravador. Foi o caso do grupo de músicos amadores que se reúne toda semana em volta de um piano antes abandonado da rodoviária Tietê. Ali há um tenor, apelidado de Pavarotti, que chega a arrancar lágrimas dos passageiros ao interpretar a Ave Maria de Gounod ou Porto Solidão, de Jessé. Não teve a chance de se apresentar para o Brasil na tevê, mas é a primeira lembrança de quem chega e a última de quem embarca em direção a todos os destinos do País. A história é dessas que a gente vê de passagem e vai logo dizendo: “poxa, vale uma Brasiliana”, em referência à tradicional seção de crônicas e personagens inusitados que há anos abrem as edições de CartaCapital – a história dos músicos, no caso, valeu mesmo, e foi reproduzia no site, com direito a vídeo (clique aqui para ler).

De toda forma, nunca é fácil encontrar um equilíbrio entre o relato sóbrio e o drama pelo drama, como pede a editora de Martin ao dizer que a história de Philomena só interessaria se tivesse final feliz, ou triste, e se os leitores identificarem logo quem era o herói e quem era o vilão. Como se as histórias “de interesses humanos”, como definia Martin, servissem unicamente à fantasia dos leitores. Não servem. Ainda assim, entre a frieza dos números e das declarações ensaiadas das celebridades, há uma multidão de Philomenas, donas de pequenas grandes histórias de que são feitos os relatos universais. Não teria conhecido nenhuma delas, nem teria feito ao espelho tantas perguntas sobre nós e nosso ofício, se tivesse dado certo na vida e virado jogador. Ou músico. Em outras palavras: se você gosta de boas histórias, não se deixe enganar pela ingenuidade aparente da velhinha na padaria. Nem deixe de conferir o filme.

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