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Personalidade forte

Como a A24 tornou-se, em tempos recentes, a mais comentada grife do cinema independente mundial

Obras. Vidas Passadas traz a perspectiva feminina dos relacionamentos. O Homem dos Sonhos envereda pelo nonsense – Imagem: A24/California Filmes e Jin Young Kim/A24
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Ela já convenceu o público a cultuar estrelas, diretores e até super-heróis. Todo dia, porém, a indústria precisa recriar estratégias para seu consumidor comprar algo com cara de novo. Assim, nasceu e cresceu a A24. O estúdio, distribuidora e, sobretudo, marca conseguiu impor, em uma década, sua aura de “revolucionária” sem precisar reinventar a roda. No setor ultraconservador do cinema, pequenas diferenças podem parecer uma imensa inovação.

O design do logotipo da A24 evoca um imaginário analógico, vintage, do tempo em que filmes eram feitos em película e Hollywood concedeu a diretores o ­status de artistas. O nome, emprestado da estrada entre Roma e Teramo, exala um jeito moderno e descolado. Priscilla, lançado no início de janeiro, Vidas Passadas (em exibição desde o dia 25), Zona de Interesse (em cartaz após o Carnaval) e O Homem dos Sonhos (com estreia programada para o fim de março) compõem a safra mais recente de produções A24.

Dois exibem na fachada a assinatura de realizadores com porte de autores. Outro oferece uma releitura agridoce do mito do amor eterno. O último tem sabor de x-tudo. Priscilla e Vidas Passadas se distinguem como filmes de diretoras e de perspectivas femininas de relacionamentos. Zona de Interesse destaca-se pela forma de abordar a tragédia do Holocausto sem repetir a espetacularização do horror. O Homem dos Sonhos se esforça para surpreender com o nonsense de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo.

A proposta nítida das produções A24 é oferecer “distinção” para um público “diferenciado”. O alvo é aquela fatia que, num tempo longínquo, admirou o “cinema de autor”. Mais tarde devotou-se aos cult ­movies e, em algum lugar do passado, conectou o termo indie a tudo que parecesse “alternativo”, mesmo quando os temas e a estética se reproduziam como todo clichê.

As produções da A24, como tudo no mundo da cultura, recicla ideias, absorve o que era marginal e destaca-se desafiando o convencional, até que sua novidade se torna previsível e outra se impõe. As plateias de um século atrás, por exemplo, escolhiam seu entretenimento lendo os signos projetados no início do que eles chamavam de fita. Bastava ouvir o ­rugido do leão da ­Metro-Goldwyn-Mayer, visualizar o pico da Paramount, o vestido da moça da Columbia, o mundinho da Universal, os holofotes da Fox ou as iniciais dos Irmãos Warner para saber que tipo de história esperar.

Os filmes autorais, por sua vez, nunca sumiram do mapa. Eles abastecem todo ano os festivais e são discutidos com fervor pela crítica e pela cinefilia. Eventualmente, daí saem nomes que ficam democratizados. Mas o resultado comercial desses filmes é modesto.

O alvo da empresa é aquela fatia do público que, no passado, admirou o “cinema de autor”

Harmony Korine, por exemplo, vinha fazendo filmes “esquisitos” desde 1997. Seu longa Spring Breakers: Garotas Perigosas, de 2012, era mais um trabalho na contramão, com tema escabroso e desobediente ao que se considera “bom gosto”. Seus direitos foram adquiridos pela A24 nos primórdios dela como distribuidora. A estratégia de marketing ajustada aos códigos das redes sociais converteu o filme em fenômeno no mercado americano. Após o teste de aprovação, a A24 consolidou rapidamente a marca distribuindo os “difíceis” Sob a Pele, O Homem Duplicado e Locke.

O investimento em produtos nos quais o critério “personalidade” se sobrepõe a “popularidade” confirmou ser mais que viável num contexto de uniformização. A Marvel e a DC já haviam definido o modelo estético e comercial do cinema hollywoodiano com saturação sensorial e ação incessante. A fatia do público em busca de dramas refugiou-se nas séries de tevê.

Em vez de se contrapor a esse modelo hegemônico, a A24 apostou na adaptação do velho conceito de “alternativo”. Ex Machina – Instinto Artificial, um de seus primeiros investimentos na produção, incorporou o avanço tecnológico dos efeitos visuais para criar uma narrativa de ficção científica reflexiva muito comum na era pré-Star Wars.

A saturação de formatos de sucesso como as franquias, terreno já ocupado por concorrentes do porte da ­Lionsgate, orientou a A24 para a diversidade. A escolha libertou a marca de se tornar refém de um nicho só. Documentários ambiciosos, filmes de terror climáticos, tramas conceituais e filmes plasticamente sofisticados seduziram um público aberto a outras experiências.

O portfólio da produtora incorporou os nomes de diretoras referência do cinema contemporâneo (Claire Denis, Kelly Reichardt, Sofia Coppola, Joanna Hogg, Andrea Arnold), apostou em estreantes (Charlotte Wells, Celine Song), converteu Robert Eggers, Barry Jenkins, Ari Aster e Yorgos Lanthimos em estrelas e viabilizou a sobrevivência de veteranos.

Moonlight: Sob a Luz do Luar, Lady Bird: A Hora de Voar e Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo capturaram o ar do tempo, dando voz às múltiplas identidades e traduzindo-as para públicos diversos. A estratégia e os projetos da A24 vão revolucionar o cinema? Não. Como já antecipou Don Fabrizio, aquela velha raposa, há muito tempo: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”. •

Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.

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