Cultura
Personagem de si mesmo
Hugh Grant chega ao 45º longa-metragem da carreira, ‘Herege’, como um tesouro nacional da Inglaterra


Herege, o 45º longa-metragem de Hugh Grant será lançado no Brasil na quinta-feira 21. Poucos críticos teriam sido capazes de prever uma carreira tão duradoura após sua estreia apagada em 1982, em Privileged (Privilegiado), filme policial de baixa qualidade e pretensioso.
Na década seguinte, ele não foi tanto um ator secundário quanto um ator com cabelos rebeldes, quase sempre escalado como um inglês elegante e ligeiramente afetado, condenado a passar boa parte do tempo ajeitando seu cabelo lustroso, para mostrar as feições finamente esculpidas.
Doze anos depois, tudo mudaria. Em Quatro Casamentos e um Funeral (1994), a franja indômita manteve-se, mas, dessa vez, foi usada como símbolo bem-humorado de um herói romântico extremamente tímido. De um dia para o outro, Grant foi catapultado para o reino da fama internacional, passando a coestrelar, com seu cabelo, uma série de comédias românticas parecidas.
Herege é um filme de terror, um mundo distante disso tudo. Grant tem 64 anos hoje, a franja se foi há muito tempo e o charme juvenil transmutou-se em algo mais perigosamente carismático.
Ele interpreta o Sr. Reed, que é movido por uma lógica provocativa, mas impiedosa, e revela um forte toque de maldade. Grant vinha flertando com a vilania há algum tempo, em filmes como Paddington 2 (2017) e Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes (2023), para não falar em seu suave e implacável Jeremy Thorpe no elogiado drama de tevê A Very English Scandal (Um Escândalo Muito Inglês).
O homem que aparece em programas de entrevistas com anedotas ensaiadas é um mestre no negócio de construir a própria imagem
O Sr. Reed, no entanto, habita um território muito mais sombrio. Grant disse, recentemente, que o papel faz parte da “era do show de horrores” de sua carreira. A mudança de direção o agradou, até porque, como ele fez questão de dizer, uma personalidade maliciosa é mais próxima da sua.
A personalidade do galã meio gago foi usada com efeito brilhantemente subversivo em Lua de Fel (1992), de Roman Polanski, e aperfeiçoada pelo roteirista Richard Curtis em Quatro Casamentos. Logo tornou-se sua persona pública preferida. “Eu pensei: se é disso que as pessoas gostam tanto, serei essa pessoa na vida real”, disse, ao New York Times.
Esse trabalho tornou-se mais difícil após sua prisão, em 1995, por causa de um encontro rápido num carro BMW, no Sunset Boulevard, em Los Angeles, com a profissional do sexo Divine Brown. O tímido romântico parecia ter sofrido um golpe fatal, mas Grant se superou e, com a ajuda do personagem, conseguiu reparar a sua imagem. Nessa empreitada, foi habilmente apoiado por sua então namorada, Elizabeth Hurley.
Com sua fotogenia e seu estilo marcante, Elizabeth era uma figura muito presente na imprensa do Reino Unido, o que os tornava um casal dos sonhos do tapete vermelho. A atenção que atraíram teria ampla repercussão mais tarde, quando Grant descobriu o que a intrusão da imprensa pode realmente significar.
Após driblar, de forma hábil, a sórdida crise sexual, a estrela de Grant continuou a subir em um trio de filmes com roteiro de Curtis: Um Lugar Chamado Notting Hill (1999), O Diário de Bridget Jones (2001) e Simplesmente Amor (2003).
Foi no segundo deles, como o cafajeste Daniel Cleaver, que Grant começou a crescer como ator cômico, improvisando algumas das melhores falas do filme. Em 2025, ele poderá ser novamente visto como Cleaver em Bridget Jones: Louca pelo Garoto, quarto filme da série.
“Acho que ele ficou apreensivo ao sair daquele personagem inglês desalinhado e de língua presa”, afirma a diretora de O Diário de Bridget Jones, Sharon Maguire. “Lembro que ele ficou surpreso e aliviado ao ver o filme na estreia, em Nova York… e só com um pouquinho de inveja por Colin Firth ter provocado tantas risadas.”
Essa produção coincidiu, temporalmente, com o rompimento com Elizabeth Hurley. Seguiu-se então um longo período de namoros intermitentes e um relacionamento cada vez mais turbulento com os tabloides. O texto-chave dessa fase é Um Grande Garoto (2002), no qual interpreta um homem que foge de envolvimentos românticos. Grant reconheceu ter colocado muito de si no papel.
Mutações. A vilania presente em Herege, terror que estreia no Brasil no dia 21, havia sido testada no trabalho para a tevê A Very English Scandal. O galã tímido de Quatro Casamentos e um Funeral ficou para trás há muito tempo – Imagem: Diamonds Films e Redes Sociais
Mas, de repente, aos 50 anos, o solteiro convicto teve dois filhos – agora com 13 e 11 anos – com a atriz Tinglan Hong. Com a produtora de tevê sueca Anna Eberstein, com quem está casado há seis anos, teve mais três filhos.
Grant, cujo pai foi um ex-oficial do exército que trabalhava no ramo de tapetes e a mãe uma professora de francês, queria, originalmente, ser escritor. Sem aprendizado formal em dramaturgia ou experiência em teatro, Grant nutria uma profunda insegurança profissional: ele dizia sofrer crises de pânico paralisantes durante as filmagens.
“Tive a forte impressão”, diz Sharon Maguire, “de que Hugh odiava a própria atuação e, ainda assim, era extremamente consciente do processo, um perfeccionista capaz de dar uma valiosa contribuição em termos de comédia e de autenticidade de uma cena.”
Sua postura exigente nem sempre lhe rendeu amigos no set. Robert Downey Jr. chamou-o de “idiota” depois de terem feito O Outro Lado da Nobreza (1995) e Jerry Seinfeld, que o dirigiu em A Batalha das Pop-Tarts (2024), estava apenas meio brincando quando descreveu Grant como “um pé no saco para se trabalhar”.
Apesar de toda autocrítica – ele disse que sua personalidade de inglês hesitante “repelia” as pessoas –, Grant também conhece o próprio valor, não apenas financeiramente, mas em termos de longevidade e posição na indústria. O homem que aparece hoje em programas de entrevistas com anedotas bem ensaiadas e autodepreciação irônica é um veterano confiante no negócio de vender a si próprio.
Há também uma frieza de aço, uma relutância em tolerar idiotas, que foi aguçada nas batalhas jurídicas travadas desde que soube que seu telefone havia sido grampeado pelo extinto News of the World. Um dos líderes do grupo de campanha Hacked Off, que defende a reforma da regulação da imprensa, Grant, este ano, aceitou um acordo com o The Sun após acusar o tabloide de contratar um investigador particular para invadir seu apartamento e grampeá-lo.
Grant tampouco deixa de mostrar seu lado irritadiço aos que estão mais abaixo na escada da mídia. No ano passado, sua entrevista formal com a modelo Ashley Graham no tapete vermelho do Oscar inspirou quase tantas críticas quanto sua interação em Hollywood, três décadas antes, com a infeliz Divine Brown.
Quando questionado sobre o que achou do evento, ele o comparou à Vanity Fair. Ele referia-se ao livro do século XIX, mas Graham entendeu que fosse à festa da revista após a cerimônia. A partir daí, a conversa só piorou e Grant foi ridicularizado como esnobe e presunçoso.
Mas talvez ele não estivesse apenas entediado com a banalidade, e sim imprimindo sua nova marca na imaginação do público. Com Grant, é impossível saber. Suas motivações reais e sua personalidade estão enterradas sob camadas geológicas de artifício, ironia e um sistema de defesa de celebridade altamente desenvolvido.
Ele, provavelmente, poderia escrever um relato maravilhosamente escabroso a respeito do mundo do cinema e de si, mas é mais provável que siga a concentrar-se na tarefa atual: ocupar gradualmente o lugar de um tesouro nacional britânico. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Personagem de si mesmo’
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