Cultura

Pelo fim da opressão, ainda: 100 anos depois, o chamado a Paulo Freire vive

O centenário de nascimento de Paulo Freire enseja uma exposição em São Paulo e a reedição de seus livros

(FOTO: Instituto Francisco Brennand (IOCFB), Instituto Paulo Freire e Eduardo Maia/Acervo de Ana Maria Araújo Freire)
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É simbólico, para não dizer revolucionário, que o centenário de Paulo Freire seja comemorado em setembro de 2021. Mais exatamente no dia 19, pouco depois de o País atravessar a intentona golpista estrelada pelo presidente Jair Bolsonaro e por alguns milhares de seguidores seus.

As obras do educador, filósofo e escritor pernambucano deixaram fortes pistas sobre a inquietude destes tempos de crises sanitária, política, social e cultural. Sua defesa da educação popular como instrumento de emancipação social e política extrapolou os limites escolares. Paulo Freire falou sobre opressões e desigualdades sistêmicas e deu importantes contribuições em prol da cidadania, da solidariedade e da tolerância.

Em Pedagogia da Autonomia, seu último livro publicado em vida, Freire escreveu: “A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser nós mesmos, tem na formação democrática uma prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado”.

Não à toa, os 100 anos de seu nascimento ensejam iniciativas que permitem que sua história e seu legado sejam revisitados e atualizados. Em São Paulo, Paulo Freire será o homenageado da 53ª edição do programa Ocupação, do Itaú Cultural. A exposição, que abre no sábado 18 e vai até 5 de dezembro, percorre a trajetória de Freire desde a sua infância, no Recife, até a sua morte, em São Paulo, em 1997.

As obras do educador e filósofo deixaram fortes pistas destes tempos de inquietude

A mostra destaca o trabalho de alfabetização de adultos realizado pelo educador em Angicos, no Rio Grande do Norte, no início da década de 1960, e o desdobramento da experiência em outros estados brasileiros, como Acre, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo e Distrito Federal. Há ainda um capítulo dedicado ao exílio vivido por Freire no Chile, durante 16 anos, como resultado da perseguição sofrida pela ditadura. Nesse perío­do, o autor escreveu uma de suas obras mais populares, a Pedagogia do Oprimido, publicada pela primeira vez em 1968.

No período que vai de 1980 a 1997, a Ocupação refaz os passos do autor no retorno ao Brasil, após sua anistia, enumerando as experiências de Freire como professor em círculos universitários como a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e a Universidade de Campinas, e sua passagem como secretário municipal de Educação na cidade de São Paulo, durante a prefeitura de Luiza Erundina.

Há, por fim, um eixo dedicado às experiências internacionais derivadas do trabalho de Freire, que coleciona ao menos 41 títulos Honoris Causa por universidades da Europa e da América. Em 2018, um levantamento feito pelo professor Elliot Green, associado da London School of Economics, por meio da ferramenta de pesquisa para literatura acadêmica Google Scholar, mostrou que Freire é o terceiro pensador mais citado do mundo em universidades da área de Humanas.

Para o gerente do núcleo de Audiovisual­ e Literatura do Itaú Cultural, Claudiney Ferreira, que integra a curadoria da mostra, a iniciativa ajuda a desmitificar percepções enganosas que teimam em colocar o educador em um lugar de “doutrinador” ou de atribuir a ele as mazelas educacionais do País, perpetuadas pela falta de compromisso público e investimento. Os curadores desejaram registrar ainda sua contribuição para além da educação.

“Paulo Freire nunca quis ter seguidores. Ele queria, sim, ser reinventado, até porque, para ele, era fundamental que seu pensamento se desse numa perspectiva dialógica, em que se levasse em conta a escuta. Era fundamental para ele saber quem estava falando e de onde se falava”, reforça Ferreira, ao citar a presença do pensamento freiriano, por exemplo, na formatação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde, em 2013.

“Queremos romper com a ideia de que suas obras servem só para a pedagogia”, afirma editora

Ainda no contexto do centenário, a editora Paz & Terra promoverá o relançamento comemorativo de duas das principais obras do autor com um novo projeto editorial. Pedagogia da Autonomia, por exemplo, trará páginas destacáveis, com frases contundentes de Paulo Freire, que podem ser transformadas em minipôsteres ou, simplesmente, presenteadas.

Já a nova edição de Pedagogia do ­Oprimido trará textos inéditos de personalidades como a antropóloga Débora Diniz; do economista Ladislau Dowbor; do filósofo Walter O. Kohan; do pesquisador Sérgio Haddad, autor de um perfil sobre o educador; e da ativista e escritora Preta Ferreira, autora do livro Minha Carne – Diário de Uma Prisão, que busca contribuir com a redução de penas de mulheres encarceradas.

Preta entrou em contato com a obra de Freire durante os 108 dias em que ficou presa em São Paulo, em 2019, após ser acusada de promover extorsão nas ocupações da cidade, como integrante do Movimento Sem-Teto do Centro, fundado por sua mãe, Carmen Silva. Preta foi encarcerada antes de qualquer julgamento.

Preta conta a CartaCapital que, dentro da prisão, ganhava muitos livros e começou então a ler Pedagogia do Oprimido, com outras mulheres encarceradas. “Eu queria que elas pudessem refletir sobre o porquê de estarem presas, independentemente de terem cometido crimes ou não, e do quanto isso estava relacionado a uma falta de educação proposital por parte dos governantes, para que nunca saíssemos do lugar de oprimido e nos víssemos como indivíduos autônomos”, relata. “A obra de Freire é usada na minha vida, pela minha arte, como forma de driblar esse sistema que mata pessoas pretas e pobres a cada 23 minutos no País.

A Paz & Terra está lançando também uma coletânea chamada Testemunho da Presença de Paulo Freire: o Educador do Brasil, que reúne depoimentos sobre as contribuições do educador, autor e filósofo em diversas áreas de conhecimento. Integram a lista dos convidados o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB-MA), a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT-RN); o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim; e o linguista norte-americano Noam Chomsky, entre outros.

Olhares de hoje Um cartoon de Claudius Ceccon (à esq.) acompanha o novo projeto editorial da Paz
& Terra, que pretende popularizar os escritos de Freire. (FOTO: Instituto Paulo Freire e Paz & Terra)

Na obra, em uma carta direcionada a Freire, Lula fala sobre a perseguição sofrida pelo educador da parte de grupos conservadores, que, inclusive, pleitearam a retirada de seu nome como patrono da educação brasileira – título que lhe foi concedido em 2012. “Paulo Freire será sempre imensamente maior do que todos eles”, grafa Lula, em uma passagem da obra, ao acrescentar, na sequência, que o educador consideraria uma honra ser declarado inimigo nº 1 da extrema-direita.

“Imagino Paulo Freire munido da mais profunda indignação, mas, ao mesmo tempo, de sua infinita paciência, com um giz na mão, diante de uma improvável sala de aula ocupada por fascistas terraplanistas, escrevendo no quadro a seguinte lição: ‘A Terra é redonda e gira em torno do Sol, e o amor será sempre maior do que o ódio’. Paulo Freire vive”, escreveu Lula.

A diretora-executiva da Paz & Terra, Lívia Vianna, diz que os esforços da editora em torno de Freire são um “chamamento” para que a sociedade se aproxime do autor. “Queremos romper com a ideia de que suas obras servem apenas à Pedagogia e, portanto, ao universo de educadores e educandos”, afirma. “Paulo Freire é popular e é capaz de dar inúmeras contribuições, sobretudo ao campo progressista.”

Publicado na edição nº 1175 de CartaCapital, em 16 de setembro de 2021.

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