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Pelo direito de se fazer filmes

A escrita de Gustavo Dahl, artífice do Cinema Novo e da Ancine, é reveladora das lutas do meio cinematográfico no País

Pelo direito de se fazer filmes
Pelo direito de se fazer filmes
Acervo. Nas cartas mandadas para Glauber Rocha, Dahl, crítico, diretor e gestor público, relata as dificuldades para vender Barravento (1962) na Europa – Imagem: Acervo Cinemateca/SP e Alexandre C. Mota/Universo Produção/CineOP
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Foi sob o apadrinhamento de Paulo Emílio Salles Gomes (1916–1977), nome-farol do pensamento cinematográfico brasileiro, que Gustavo Dahl começou, na década de 1950, a escrever no Estado de S. Paulo. Embora não demorasse para que, da reflexão crítica, ele passasse à feitura de filmes, como montador e diretor, e à lida institucional, na estatal ­Embrafilme, ele nunca abandonou a escrita.

Dahl escreveu em jornais, revistas e publicações acadêmicas, além de muitos discursos, projetos de política audiovisual e cartas. Foi desse material, somado a um conjunto de entrevistas, que nasceu Cinema Brasileiro: Eu e Ele, organizado por ­Tania Leite e Alberto Flaksman.

O livro, que reúne 41 de 250 documentos catalogados por Tania, é uma peça importante para a compreensão das bases político-culturais do cinema brasileiro. Muito do que Dahl pensou paira ainda hoje sobre o setor.

O volume foi organizado em três ­eixos. O primeiro volta-se ao Cinema Novo, movimento do qual fez parte, e é composto especialmente de cartas escritas para o cineasta Glauber ­Rocha ­(1939–1981), o crítico Jean-Claude ­Bernardet ­(1936–2025) e o próprio Paulo Emílio.

Vem, na sequência, um bloco centrado na Embrafilme, empresa criada no regime militar, onde Dahl assumiu a Superintendência de Distribuição.

A última parte é dedicada ao processo de criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), iniciado em fins dos anos 1990 e por ele liderado. Dahl foi o primeiro diretor-presidente da agência.

O que mais chama atenção, no todo, é o quanto, nessa trajetória, Dahl parece ter sido movido, sobretudo, por algo que para ele era uma causa: a luta pela possibilidade de o cinema brasileiro existir, a despeito da lógica de um mercado formatado para receber o produto hollywoodiano.

“O filme brasileiro existe por aquela mesma misteriosa virtude que faz o besouro condenado pela aerodinâmica ­voar”, diz, na sequência de uma análise sobre a inviabilidade comercial da maioria dos filmes feitos no País ante aqueles vindos dos Estados Unidos. “A diferença brutal de escala”, prossegue, “fez-me sentir à beira do ridículo, do absurdo, nesta defesa renitente do direito de o Brasil ter seu cinema.”

Dahl teve logo a clareza de que as tentativas de conquista do mercado interno seriam sempre frustradas pela fragilidade da distribuição.“Os filmes foram feitos sem pensar na distribuição”, afirma, antecipando o que segue a ser repetido.

Seu diagnóstico de que os Estados Unidos “controlam o mercado mundial, indispensável para a cobertura dos altos custos, através de sua vasta rede de distribuição”, ganhou recentemente ainda maior concretude com a publicação de Hollywood e o Mercado de Cinema no Brasil: Princípios de Uma Hegemonia ­(Letramento, 328 págs., 74,90 reais).

Cinema brasileiro: eu e ele. Gustavo Dahl. Organizadores: Tania Leite e Alberto Flaksman. Alameda (404 págs., 119 reais)

Fruto da pesquisa de doutorado do jornalista Pedro Butcher, esse livro funciona quase como um compêndio daquilo que Dahl compreendeu a partir da prática – fazendo filmes e política, e vivenciando o mercado europeu.

São especialmente reveladoras as cartas enviadas para Glauber, no início da década de 1960, quando Dahl tenta vender Barravento (1962) no exterior. “Viva! Viva! Barravento é agora a grande esperança”, escreve para o amigo, de Roma, em 1961. Não demora, porém, para que a esperança se transmute em frustração.

“A situação concreta é a seguinte: a venda na Itália é impossível”, diz. Mais adiante, ainda em cartas, ao refletir sobre o fiasco internacional de Porto das Caixas (1963), de Paulo Cesar ­Sarraceni, e Garrincha – Alegria do Povo (1962), de Joaquim Pedro de Andrade, Dahl decifra a ilusão em torno do projeto de internacionalização da produção nacional.

“O problema do mercado europeu é o seguinte: quem criou esta onda de mercado europeu fomos nós três (ele, ­Glauber e Sarraceni), mais o sucesso de O ­Pagador de Promessas”, escreve. “Mas nós a criamos um pouco iludidos, um pouco otimistas, um pouco malandros, para permitir que Barravento, Porto das Caixas e Garrincha fossem feitos.”

Embora referentes a uma fase muito diferente do mercado, suas reflexões sobre validação externa e público interno se conectam ao momento atual.

“É difícil”, diz, “fazer um filme que seja (…) suficientemente comercial para não meter medo aos distribuidores e exibidores brasileiros, suficientemente brasileiro (…) para que satisfaça no exterior a uma necessidade (…) de tipicidade, sem cair no exotismo (…) e suficientemente ‘artístico’ para impressionar os imbecis críticos que frequentam os festivais.”

Difícil, mas, por vezes, possível, como demonstram o Oscar e o sucesso deAinda Estou Aqui e os prêmios e a repercussão de O Agente Secreto, que estreou na semana passada liderando as bilheterias. Ambos também superam uma contradição que afligia Dahl: aquela “entre um cinema responsável no nível do pensamento e da linguagem e sua aceitação pelo público?”

Nenhuma conquista e nenhum fracasso são, porém, isolados. E Dahl, além de insistir na dificuldade que é furar o bloqueio hollywoodiano, toca em questões mais amplas, como a cota de tela; a pressão da produção por recursos públicos; e as arriscadas relações entre cinema e Estado.

Sua escrita, marcada por voltas e digressões, faz com que os textos se tornem, em alguns momentos, reiterativos. E, para um público contemporâneo – sem referências sobre seus companheiros de Cinema Novo –, talvez enigmáticos.

O conjunto, no entanto, é revelador de um cinema cuja história, fora da tela, não é menos interessante do que aquelas que os filmes contam. •

Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pelo direito de se fazer filmes’

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