Cultura
Pelo direito de discordar
O esfaqueamento de Salman Rushdie, ocorrido nos Estados Unidos, foi também um ataque à democracia liberal e à própria liberdade


O direito de discordar é fundamental para o desenvolvimento humano, mas, ao longo da história, escritores e pensadores que ousaram desafiar as ortodoxias de seu tempo enfrentaram perseguição e violência. É preciso ter uma coragem extraordinária para persistir diante de ameaças mortais destinadas a intimidar, silenciar e aterrorizar.
Durante mais de 30 anos, Salman Rushdie recusou-se a ser intimidado por uma fatwa que pedia seu assassinato. A fatwa, emitida em 1989 pelo então líder supremo do Irã, aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), foi motivada pelo romance Os Versos Satânicos (1988), considerado, pelo governo muçulmano, ofensivo a Maomé.
O violento ataque a Rushdie, ocorrido na sexta-feira 12, durante uma palestra por ele proferida no anfiteatro de um centro cultural em Chautauqua, no estado americano de Nova York, não foi apenas um atentado hediondo à vida de um dos contadores de histórias mais perspicazes do mundo. Foi também um ataque ao direito de discordar, à democracia liberal e à própria liberdade.
Ainda mais chocante do que a fatwa, emitida quando a democracia parecia estar em ascensão, foi o fracasso dos defensores da democracia em ficar ao lado de Rushdie quando ele se viu forçado a se esconder, durante quase uma década, e seus amigos foram assassinados por fanáticos.
Muitos dos chamados liberais, incluindo políticos britânicos do alto escalão, pareciam mais preocupados em expressar simpatia por aqueles que ele ofendeu ou em dizer por que discordavam dele do que em condenar inequivocamente os que pediram sua morte ou queimaram o romance Os Versos Satânicos, na tentativa de proibi-lo na Grã-Bretanha.
Quando Rushdie foi condecorado cavaleiro, em 2007, pelos serviços prestados à literatura, alguns afirmaram que o título foi um grave passo em falso. É como se os ofendidos devessem ter o poder de veto sobre a celebração de talentos refinados.
Embora tenha resistido ferozmente às tentativas de defini-lo por meio de ameaças à sua vida, Rushdie tornou-se um dos mais poderosos defensores da liberdade de expressão diante das culturas fortemente repressivas que tiveram permissão para florescer na direita e na esquerda políticas em países como Estados Unidos e Reino Unido.
Enquanto pessoas morrem lutando por suas liberdades em algumas partes do mundo, os direitos de liberdade de expressão são considerados por muitos não como coisas preciosas a ser protegidas da erosão, mas a ser tidas como fato consumado.
As ameaças de violência contra quem desafia ideologias religiosas tornaram-se comuns
No entanto, como observou o escritor britânico Hanif Kureishi, “ninguém teria coragem hoje de escrever Os Versos Satânicos e, muito menos, de publicá-los”.
Quando, em 2015, a revista satírica francesa Charlie Hebdo recebeu um prêmio de coragem do PEN Literary Awards – America, alguns meses depois de oito de seus membros terem sido assassinados em Paris, por terroristas islâmicos, mais de 200 escritores proeminentes escreveram ao PEN, criticando-o por “valorizar seletivamente material ofensivo”.
Na França, um professor foi decapitado em outubro de 2020 depois de usar desenhos satíricos do profeta Maomé em suas aulas. Na Grã-Bretanha, um professor foi obrigado a se esconder após receber ameaças à sua vida em circunstâncias semelhantes.
Ameaças de violência contra aqueles que desafiam ideologias religiosas e seculares tornaram-se comuns. Ainda que o governo britânico tenha expandido os poderes policiais sobre o direito de protestar, os tribunais entenderam que as forças policiais estão ameaçando, ilegalmente, indivíduos que expressam opiniões sobre temas em disputa na contemporaneidade. Nota-se também que denúncias mal-intencionadas a respeito de intolerância estão sendo usadas como arma para calar os dissidentes.
Dois anos atrás, Rushdie foi um dos signatários de uma significativa carta que procurava alertar para as consequências da crescente intolerância social à dissidência. O autor pagou um preço devastador por defender a liberdade de expressão.
Que este atentado à sua vida possa chocar os liberais complacentes, tirando-os de seu estupor. “No momento em que se declara que um conjunto de ideias é imune à crítica, sátira, escárnio ou desprezo, a liberdade de pensamento torna-se impossível”, disse o escritor anglo-indiano, em 2005. Ele estava totalmente certo então, agora e sempre. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
RUSHDIE JÁ ESTÁ CONSCIENTE
O autor segue internado, em recuperação, mas conseguiu prestar depoimento à polícia
Embora siga internado, em estado que inspira cuidados, Salman Rushdie, ao longo desta semana, voltou a falar e, segundo notícias publicadas pelas agências internacionais, conseguiu, inclusive, prestar depoimentos de maneira “articulada” aos investigadores que apuram o atentado por ele sofrido em Nova York.
Em entrevista à CNN, um dos investigadores do caso afirmou ainda que o escritor segue em recuperação das severas lesões sofridas em decorrência do esfaqueamento ocorrido na sexta-feira 12. O agente literário de Rushdie havia dito que ele corre o risco de perder um olho e teve os nervos de um dos braços cortados.
As facadas – de dez a 15 – foram desferidas por Hadi Matar, de 24 anos. O criminoso subiu no palco no qual Rushdie se preparava para dar uma palestra e, logo após o ataque, foi preso em flagrante. Matar, que se diz inocente, foi indiciado por tentativa de homicídio de segundo grau e agressão.
Na segunda-feira, de acordo com as agências internacionais de notícias, o Ministério das Relações Exteriores do Irã negou ter qualquer tipo de envolvimento na ação.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pelo direito de discordar”
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