Cultura

cadastre-se e leia

Paula Rego e seus seres estranhos

Por que as pinturas da artista luso-britânica, morta no mês passado, em Londres, aos 87 anos, são tão enigmáticas e subversivas

Criaturas e criadora. Mesmo na fragilidade da velhice avançada, a autora de quadros como A Família e Filha do Policial (ao lado) continuou indo todos os dias a seu ateliê, no bairro de Kentish Town, para trabalhar - Imagem: Victoria Miro e Antonio Olmos/TheObserver
Apoie Siga-nos no

Conheci Paula Rego há 20 anos, entrevistei-a novamente quando ela completou 80 anos e tivemos uma conversa final, por e-mail, em 2021, pouco antes da magnífica retrospectiva de seu trabalho na Tate Gallery, em Londres, realizada no ano passado. Foi, provavelmente, sua última entrevista.

Nosso primeiro encontro foi em seu estúdio, localizado no bairro de Kentish ­Town. Ela devia estar na casa dos 60 anos. Parecia uma londrina próspera e, ao mesmo tempo, uma portuguesa muito franca.

Seu estúdio estava cheio de criaturas estranhas: um cavalo em tamanho real, um pelicano empalhado, um macaco de brinquedo maltratado. E havia roupas em araras: uma sobrecasaca vitoriana, um colete cor de tomate, um vestido de tafetá. Era como estar nos bastidores de um set, sendo ela a diretora, a figurinista e contrarregra.

Fiquei entusiasmada com sua imaginação e com tudo o que tinha a dizer. Ela estava prestes a exibir suas formidáveis pinturas baseadas em Jane Eyre, de ­Charlotte Brontë. Lembro-me de ter-lhe contado como me maravilhei com a maneira como ela libertou Jane da camisa de força de ser uma governanta inglesa e a transformou em uma figura mediterrânea, na qual o desejo é cruamente visível.

Sua Jane, refleti em voz alta, não era um rato. Diante disso, Paula Rego, que até aquele momento falava de maneira generosa, modesta e cooperativa, explodiu: “Não acredito na existência de camundongos! Todo camundongo tem intestinos e dentes, e são aterrorizantes, os camundongos. Jane Eyre é de fato meio rata, embora nobre e muito orgulhosa”.

Durante toda a carreira, Paula­ fez uma defesa fiel, feroz e complexa das mulheres: ela não era polemista, mas seu trabalho – em particular, a sequência de dez pinturas sobre o aborto, de 1998 – fez mais do que qualquer demonstração verbal para ajudar a mudar a lei antiaborto portuguesa.

A atuação foi complicada porque ela não transformou suas mulheres em heroínas. Ela, ao contrário, explorou sua dor, sua tristeza, seu ardor. E suas falhas. Ela também continuou a expressar seus próprios sentimentos sobre ser mulher: várias de suas melhores pinturas brotaram de seu casamento com o artista ­Victor Willing (1928-1988), que morreu tragicamente jovem, de esclerose múltipla.

“Não sou corajosa na vida real, mas não tenho medo de fazer nada no meu trabalho”, dizia ela

Paula, certamente, não era um rato, embora se pudesse dizer – ela não teria se importado – que havia um macaco brincalhão nela (macacos malcriados aparecem em pinturas maravilhosas, feitas por ela nos anos 1980). Ainda posso ver a malícia em seu sorriso, os dentes desencontrados, o brilho em seus olhos. A sensação de ver a criança inextinguível na mulher idosa. Aos 80, ela me disse: “Não sou corajosa na vida real, mas não tenho medo de fazer nada no meu trabalho”.

Eu amo seu trabalho porque ele faz o que as melhores pinturas fazem: levanta questões que não podem ser respondidas definitivamente. Revendo o catálogo da retrospectiva realizada na Tate em 2021, fico novamente impressionada com o quanto os sujeitos de suas pinturas raramente olham para nós. Quando nos intrometemos em seus devaneios, há uma sensação de transgressão. Isto é, em parte, o que torna seu trabalho poderosamente enigmático e subversivo.

O que a Filha do Policial (1987) pensa enquanto engraxa a bota do pai? O que a mulher dançando sem par sob o luar em sua obra-prima A Dança (1988) sente em seus sapatos inadequados? E o que, em

A Família (1988), podemos pensar sobre a mulher que veste um homem indefeso – a mais rude das enfermeiras – com o braço sobre a boca dele como se o sufocasse, sua própria boca fixa numa expressão de gentileza duvidosa? O horizonte para o qual ela olha nós não podemos enxergar. Lila Nunes, a modelo e amiga de Paula que havia sido babá da família, aparece repetidamente nessas pinturas – sempre e nunca a mesma.

Uma coisa notável que descobri na entrevista de 2021 é que, mesmo na fragilidade da velhice avançada, Paula continuou indo todos os dias ao seu estúdio em Kentish Town para trabalhar. Estou tentada a escrever: ela foi uma inspiração. Sei, no entanto, que ela teria descartado isso, teria dito que o trabalho era necessário para a sobrevivência e que a pintura era quem ela era.

Ela me disse, em nossa última conversa, que pintava para descobrir o que sentia: não existia algo como metas estabelecidas ou conclusões predeterminadas. Sua morte, ocorrida no mês passado, aos 87 anos, foi sentida por todos que a conheceram, não importa quão brevemente, e por inúmeros de seus admiradores no mundo. Mas suas pinturas, incomparáveis, continuarão nos fazendo meditar: nunca serão resolvidas, nunca estarão no pretérito. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Paula Rego e seus seres estranhos “

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo