Cultura
Parem o mundo que eu quero descer
A Síria é um país soberano. Seu regime não é da nossa conta. E acho que não é menos democrática do que a Arábia Saudita
Que me perdoem os leitores por meu pouco conhecimento das relações internacionais. Não que eu deixe de acompanhar diariamente o que vem acontecendo por este nosso velho e cansado mundo. Isso não. Aliás, como não assino jornal (não me sobra tempo das leituras de literatura), procuro me informar por dois, três noticiários de televisão. Mas é claro, macaco velho, já aprendi que televisão deve ser vista sempre com um dos dois pés para trás. O que se diz, como se diz e em benefício de quem.
Pois bem, uma das coisas, nas relações internacionais, que me vem intrigando ultimamente, é o empenho inicial de Obama em aplicar um corretivo no seu correlato Assad. Primeiro disseram que o sírio havia usado arma química contra os rebeldes. O Obama saiu de casa trotando verbos que seu correlato sírio precisava ser castigado. Sabe, te dou ponto negativo, te deixo de joelhos sobre milho, te corto a mesada do mês. Desse jeito. Ao estilo cowboy. Mim tem revólver, mim mata bandido, porque se não vou com a cara, é bandido. Tá bom? Acontece que apareceu alguém dizendo que, bem, ainda não se sabe se o governo lançou o sarin ou se foram os rebeldes. Imediatamente o xerife mudou o discurso. Não me interessa: foi no território sob sua jurisdição, tem de ser castigado porque não coibiu a ação dos rebeldes. Vocês se lembram da fábula? Aquela do lobo e do cordeiro. O mundo dá voltas e voltas e continua no mesmo lugar.
O interessante nesta história, e que me deixa completamente confuso, é que, na Convenção de Genebra de 1925, ficou proibido o uso de armas químicas, convenção que resultou em vários tratados posteriores e que foram assinados por alguma autoridade estadunidense. Se ficasse só nisso, até daria para entender. Mas acontece que ainda me lembro dos anos que vão de 1961 a 1971, os dez anos em que os Estados Unidos, o país dirigido pelo senhor Obama, despejaram cerca de 80 milhões de litros do Agente Laranja sobre a população do Vietnã. O Agente Laranja é inofensivo? Uma ova. E a dioxina tetraclorodibenzodioxina (cancerígena) que estava embutida (400 quilos)? Foram 4.800.000 pessoas atingidas por esse crime. Mas não estava proibido?
E agora vem dar de santo, democrata, pai do mundo? Como entender tudo isso? Será que ele já esqueceu as pessoas mortas no Afeganistão porque estavam em uma festa de casamento? E quantos civis foram mortos no Iraque?
Se a você parece que estou na defesa do Assad, calma aí. Não defendo nem ataco, pois não se comprovou ainda quem usou o sarin. Ah, ele é um ditador? Não é problema nosso. A Síria é um país soberano. Seu regime não é da nossa conta. E acho que não é menos democrática do que a Arábia Saudita. Não, não acuso (por enquanto) nem condeno o Assad. Agora, o que não me desce pela garganta é o roto falando mal do rasgado. Nem todo mundo é tolo neste planeta.
Outra coisa que não entendo é esta questão de instrumento. Punhal, fuzil, canhão, bomba atômica (Iroshima e Nagazaki) tudo isso pode matar. Produto químico não pode. Porque produto químico mata em massa. Bomba atômica não, ela escolhe os bandidos e não mata mais ninguém. Para este mundo que eu quero descer.
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