Cultura

Pare 2018 que eu quero descer

Está no ar o temor de que ano novo chegue no dia primeiro de janeiro

'Estamos todos assustados e com temor de que dois mil e dezenove, queira ou não queira, vai chegar'
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Passado o Natal, vinha aquela euforia com a chegada do ano novo, uma semana depois. Era quando o meu pai chegava em casa carregando uma enorme folhinha da KLM com aquelas imagens maravilhosas de moinhos de vento, holandesas de tranças e tamancos e campos de tulipas.

Antes mesmo de acabar o ano, ele dependurava na parede, com a ajuda de um martelo e um prego, aquela folhinha maravilhosa. Ficávamos em volta dela, passando os meses, cada um querendo saber em que dia da semana cairia o seu aniversário.

Meu pai trazia da repartição uma agenda Pombo para cada filho e imediatamente pegamos uma caneta e preenchíamos o nome, o endereço, telefone e o tipo sanguíneo.

Minha mãe fazia uma faxina na casa, abrindo gavetas, picando e jogando papéis fora, guardados durante o ano inteiro, inutilmente. Passava Silvo nas pratarias e óleo de peroba nos móveis coloniais, à espera de um ano novo e feliz.

Fazíamos uma montanha de promessas. Passar de ano sem segunda época, tomar pouca Coca-Cola, ler um livro por semana, anotar e cumprir todos os afazeres na agenda Pombo, não perder as missas de domingo, não brigar com os irmãos, ver menos televisão e guardar dez por cento da mesada todo mês.

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Não havia promessa de fazer dieta naquela época em que não havia academia, se cozinhava com banha, comia-se torresmo, passava manteiga no miolo do pão, o café era com açúcar e não havia leite desnatado, nem semidesnatado. A promessa da minha mãe era uma só, saúde para todos. E o meu pai completava, rindo: E muito dinheiro no bolso!

O fim do ano ia chegando e nossa euforia era grande. Lavávamos o pombal com Creolina para que, no primeiro dia de janeiro, estivesse limpinho e cheiroso. Tirávamos o mato da horta, os pulgões das folhas de couve e fazíamos uma armação de arame para que o pé de chuchu pudesse se acomodar no muro, sem incomodar o vizinho.

A última semana do ano parecia que não existia. Ninguém mais conseguia direito, ninguém estudava mais porque as férias já tinham começado, não tínhamos paciência nem pra sentar e ver o Zé Colmeia na televisão. Era só preparação pro ano novo que estava despontado. Todos os anos, nessa semana, o meu pai vinha com uma velha piada e minha mãe sempre caia. Ele chegava da Meteorologia, abria a porta e dizia:

– Sabe quem está nas últimas?

– Quem? Quem? perguntava minha mãe, arregalando os olhos.

– O ano velho! dizia ele, enquanto todos caiam na gargalhada, dizendo:

– Mas mãe, você caiu de novo?

No fim da manhã do dia 31, sabíamos que já era ano novo na Austrália, mas naquela época não havia o Jornal Hoje pra anunciar na escalada: Já é ano novo em Sidney! Só víamos os fogos explodindo por lá, no dia seguinte, numa radiofoto toda riscada, no jornal O Globo.

Os papeis picados caindo das janelas na avenida Paulista, na Avenida Brasil e na Avenida Afonso Pena, na minha Belo Horizonte, eram uma atração à parte. Não tinha ano que o meu pai não comentasse “eu tenho dó dos garis, amanhã cedo, que vão começar o ano varrendo rua”. 

Não havia ceia na passagem do ano, na minha casa. Comíamos uma comida dessas de domingo, por volta das dez horas da noite porque, onze e pouco, íamos todos pra Sociedade Mineira de Engenheiros pro Réveillon.

Meia noite em ponto, a banda dava o grito de carnaval e nós pulávamos até nos acabar, ao som de olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é. Ao som do joga a chave, meu amor, não chateia por favor, ao som de Bandeira branca, amor, eu peço paz e índio quer apito, se não der pau vai comer!

Chegávamos em casa estropiados, abríamos a geladeira pra ver se tinha sobrado um pouco da maionese, um pedacinho frio de lombo e umas uvas geladas. Ainda dava tempo de ver na televisão o videoteipe da queima de fogos em Copacabana, a cascata caindo do Hotel Meridien, as velas acesas na areia e as palmas pra Iemanjá, indo e vindo nas onda do mar.

Mas esse ano, não vai ser igual aquele que passou. Estamos aqui em casa todos assustados e com temor de que dois mil e dezenove, queria ou não queira, vai chegar. Dois mil e dezoito ainda não está nas últimas, mas já está desenganado.

Ouvi dizer que, a partir do dia primeiro de janeiro, vão começar a matar gays, lésbicas e simpatizantes. Vão agredir quem estiver com camisa vermelha e colocar na clandestinidade o MST e o MTST. Vão prender o Boulos, o Stédile e metralhar a petezada.

Estão dizendo que vão perseguir os professores, vão acabar com os livros de História e colocar na fogueira todos os do Paulo Freire. Vão fechar a TV Brasil, vender a Petrobras, cercar os índios, prender cem mil, fechar jornais e disseram até que vão declarar guerra à Venezuela.

Só me resta colocar na vitrola aquele velho disco do meu pai que ele fazia questão de ouvir, todo dia 31 de dezembro:

Adeus, ano velho!

Feliz ano novo!

Que tudo se realize

No ano que vai nascer!

Muito dinheiro no bolso

Saúde pra dar e vender!

Para os solteiros, sorte no amor

Nenhuma esperança perdida

Para os casados, nenhuma briga

Paz e sossego na vida

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