Cultura

Para minha amada morta e o choque da alteridade

Filme de Aly Muritiba trata de uma morte dupla: a da mulher e a do ‘anjo do lar’. Uma morre com o corpo. A outra, quando seu desejo é descoberto

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Num futuro próximo, vamos nos lembrar deste período de distensões sociais não como efeitos de uma crise política ou econômica, ao menos no caso brasileiro. Lembraremos dessa década como uma época de precedentes perigosos em direção ao colapso da alteridade. Nesse período, a reafirmação do sujeito implica a reafirmação de valores em grupo, mas também a eliminação, física ou simbólica, de oponentes. Não basta reafirmar, por exemplo, uma opção política; é preciso defenestrar a opção do outro e sua representação.

Da sensação de descontrole do próprio destino à troca da liberdade por mais segurança em cidades que oprimem, dividem, alienam e desumanizam, há um terreno imenso a ser explorado em busca de respostas para a incorporação de símbolos de um estado irritadiço, agressivo e limitador em nossa linguagem e nosso cotidiano.

Um sintoma dessa violência é o esforço em enquadrar movimentos complexos, permeados por nuances e contradições, em caixas de conceitos prontos. É o que chamamos de clichê, aquela maldita goma de mascar que quando gruda chega a sufocar os sujeitos e objetos da fala.

Nesse contexto, Para minha amada morta, filme do diretor estreante Aly Muritiba que em condições normais seria recebido sem grande entusiasmo, estreia no circuito comercial como uma espécie de representação deste sintoma. No drama, um fotógrafo que trabalha para a polícia, interpretado por Fernando Alves Pinto, tenta tocar a vida ao lado do filho após a morte da companheira.

 

Em casa, o protagonista desenvolve rituais para celebrar a amada morta, como se reforçasse em cada espaço e objeto deixado por ela um processo de canonização: os vestidos, os sapatos, os vídeos em VHS com a memória de uma pureza infantil.

Apesar da morte, uma interdição da natureza, tudo ali se desenvolve com uma relativa ordem: o luto, a tristeza, a razão de seguir em frente com o filho pequeno, a atenção sobre a criança, os cuidados com a casa, as homenagens póstumas, os espaços adequados para a saudade.

Tudo é desconstruído quando o pai descobre, em um dos vídeos deixados pela companheira, que ela teve um amante. É quando descobrimos que a amada morta era uma projeção. Uma espécie de anjo do lar, arquétipo descrito por Virginia Wolf como uma mulher “extremamente simpática, imensamente encantadora, totalmente altruísta”.

Essa mulher, descreve a autora, é “excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto”.

Para minha amada morta é um filme sobre uma morte dupla: a da mulher e a do anjo. Uma morre com o corpo, e leva com ela mistérios que ninguém em vida pode (ou tem direito) a revirar. A outra morre quando seu desejo é descoberto. Pior: um desejo sobre algo que não lhe foi outorgado desejar.

Em nossa cultura, a traição é o que de pior pode acontecer a um casamento. Nele perdoamos a falácia, a agressão verbal, o tédio, as chantagens e maldições. Mas uma traição, não. Ela é a desfeita de um trato assumido diante da comunidade a partir de noções sobre fidelidade, segredo, coerência, etc. Mas funciona de diferentes modos quando o peso histórico da relação é um para um homem e outro, para a mulher.

Durante anos, a religião e a medicina, referendadas pelo sistema jurídico, se limitavam a descrever a mulher como um ser não apenas dedicado aos afazeres do lar, mas incompatível com a vida pública.

A historiadora Margareth Rago, em seus estudos, cita a descrição, feita por um médico homem, de mulheres à semelhança de um pato para justificar essa inabilidade de andar com as próprias pernas e assumir responsabilidades historicamente dominadas pelos homens.

Ela lembra que, até pouco tempo atrás, homens públicos eram homens importantes – políticos, intelectuais, etc. Mulher pública era sinônimo de prostituta.

O anjo do lar, que nas palavras de Virginia Wolf não tem opinião ou vontade própria, é reduzido, assim, a um corpo. Um corpo sobre o qual o cônjuge, como sucessor do pai e antecessor do filho, projeta uma espécie de direito natural de uso e posse. Surgem daí todos os abusos e agressões, físicas ou psicológicas.

Essa determinação histórica começa a mudar quando uma série de direitos é reivindicada a partir da entrada daquele “corpo” no mercado de trabalho. (Para desgraça do companheiro, a amada morta do filme, que só conhecemos por uma imagem de VHS desfocada e por uma única fala, não era um anjo do lar, mas uma advogada dedicada e em contato com um mundo para além de suas obrigações com o marido, o filho, a casa). “Essa mulher era louca”, dizem dela a certa altura do filme.

A traição do homem, nesse sentido, é, quase sempre, minimizada pelo reconhecimento de seu desejo. Esse desejo, por sua vez, é compreendido como um deslize – indesejável, mas não condenável; evitável, mas não desnecessário.

O peso da traição é maior quanto menor o reconhecimento do desejo – o que leva a discussão para um campo moral. A tormenta do personagem do filme não é, em si, o reconhecimento forçado de um desejo, mas a sensação de ver invadido algo que imaginava lhe pertencer. Para ele, nada pode ser mais invasivo do que saber que esse “terreno”, destituído de qualquer subjetividade, foi penetrado por alguém que não ele. A partir daí é desencadeado o processo de (in)compreensão que o leva à loucura. 

E é a partir daí que temos um espelho de um país conflagrado. Hoje, no Brasil, temos observado uma certa degeneração do debate público que, em vez de produzir respostas e consensos, escancara nossas desavenças. Pior: em reposta àquilo que condenamos, temos defendido posições condenáveis, numa espiral de reduções e violências típicas de mentes fascistas. Em outras palavras, temos visto o inferno, e o inferno, dizia Sartre, é sempre o outro.

No filme de Muritiba, o inferno é nosso duplo ao avesso. Para o fotógrafo da polícia, bandido bom é bandido morto: incapaz de levantar ou reagir, pode ser retratado por qualquer ângulo conforme o desejo do portador da lente. O mau bandido, por sua vez, é o bandido bom. O que sobrevive. O que se regenera. O que já não pode ser punido ou já o foi. E que, na brutalidade da própria existência, passa a condenar o que ele pratica à medida que o policial do filme passa a praticar o que ele condena.

Para compreender o algoz, numa dualidade de fundo entre o bronco da periferia e o bronco do centro da cidade, o protagonista deixa de ser o marido atencioso, o pai responsável, o sujeito injustiçado por uma suposta invasão – o encontro de um desejo que não reconhece com um sujeito a quem não é reconhecida a humanidade.

Fernando, o bom moço, passa a andar no meio-fio entre a investigação e a ilegalidade, a invasão e o sadismo, a racionalidade e a loucura, ao tentar compreender seu suposto algoz. E quanto menos o compreende, mais frágeis são as noções e riscos da empreitada.

A ideia de crime ou pecado não é regulada pela compaixão, que é, ou deveria ser, a base da alteridade de que nos falam a igreja e a lei, mas pela vingança. É essa vingança o elemento desestabilizador que destitui o direito à existência de quem precisa a todo custo ser invadido e ferido também, como se o campo afetivo fosse necessariamente uma briga por um território. Isso é reforçado pela ideia de pertencimento incutida no casamento, e consagrada pela distância de direitos entre quem ama e quem é amada.

Ao longo do filme, Fernando se afasta do sujeito sensível e dedicado apresentado nas primeiras cenas. Torna-se o avesso do “Bom Marido” de Dostoiévski, um potencial criminoso, no limite de uma tragédia, movido pela maldita honra.

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