Cultura
Para lidar com o trauma, a fantasia
O escritor Seiko Ito usa o terremoto e o tsunami de Fukushima como pontos de partida de sua narrativa


Nem sempre o realismo é a melhor maneira de se lidar, literariamente, com os traumas históricos. Alguns dos melhores romances sobre grandes episódios históricos se encaixam em gêneros como fantasia, horror e ficção científica.
O japonês Seiko Ito, nascido em 1961, conhecido também pelos trabalhos como rapper e artista multimídia, é um dos que se valem do insólito para investigar as feridas do seu país.
A narrativa de Rádio Imaginação tem como catalisador o terremoto e o tsunami ocorridos em Fukushima, em março de 2011. Nesse cenário, uma estação de rádio surge do nada. De repente, ela começa a chegar às pessoas por meio de suas mentes. Que tipo de delírio coletivo seria esse?
Transitando entre o realismo e a fantasia, Ito está mais interessado em investigar as consequências de uma tragédia e explorar as maneiras pelas quais as pessoas lidam com a história do que em dar explicações.
Ark, o narrador, é um DJ que toca músicas, lê cartas e mensagens e recebe ligações – nunca sabemos ao certo de que maneira. Embora caiba a ele fazer as músicas tocar – entre elas há muito pop e até Tom Jobim –, cada um ouve o que quer em sua cabeça. É o próprio Ark quem diz que o ouvinte que não estiver interessado na história que está contando ou na música que está tocando, pode fazer outra coisa soar para si mesmo.
RÁDIO IMAGINAÇÃO. Seiko Ito. Tradução: Rita Khol. Companhia das Letras (184 págs., 69,90 reais)
Entre um capítulo e outro há outras narrativas em primeira pessoa, que, de cara, parecem desconectadas da trama central, envolvendo a rádio. Aos poucos, no entanto, as peças vão se encaixando e as vozes dos mortos vão ganhando materialidade.
O maior trauma do Japão é a bomba atômica de 1945 e Ito argumenta, em seu romance, que, a partir desse momento, o país perdeu o contato com seus mortos, com sua história.
“Nós sempre seguimos adiante de mãos dadas com os mortos, não foi? No bombardeio em Tóquio, […] na bomba de Hiroshima […], na de Nagasaki também, e em todos os outros desastres. Mas, em algum momento, o Japão se tornou incapaz de abraçar os mortos. Por quê? […] Eu acho que é porque paramos de ouvir a voz deles”, diz uma personagem.
Nesse sentido, Rádio Imaginação conclama os leitores a lidar com as perdas e as fraturas históricas. Valendo-se de uma narrativa calcada na oralidade e de uma linguagem que gera estranhamento, Ito consegue, de forma original, investigar questões profundas. •
Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.
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