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Para decifrar o pesadelo

Maria Rita Kehl mostra o papel dos agentes bolsonaristas na “banalização do mal” vivenciada no Brasil contemporâneo

Para decifrar o pesadelo
Para decifrar o pesadelo
A psicanalista parte da noção criada por Hannah Arendt – Imagem: Damião A.Francisco/CPFL Cultura
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Que Bolsonaro e o bolsonarismo representaram alguma novidade na sociedade e na política brasileira não resta dúvida. Ao mesmo tempo, é impossível não reconhecer o seu enraizamento na história do País. De certa forma, pode-se dizer que algo do bolsonarismo sempre esteve latente entre nós. É como se, no momento em que tomou forma, ele tivesse se tornado a expressão atualizada de uma “exceção” que, por aqui, muitas vezes se estabeleceu como a “norma”.

Explicitar essa conexão entre presente e passado é o grande mérito do novo livro, Tempo Esquisito, de Maria Rita Kehl, colunista de CartaCapital. Coletânea de textos escritos em sua maioria durante a pandemia causada pela Covid-19, publicados nos mais diversos veículos de mídia, a obra explora algumas das faces mais cruéis do projeto bolsonarista.

A autora revela, por exemplo, como a violência política inscrita na alma do bolsonarismo não pode ser compreendida sem a referência à violência onipresente na história brasileira, desde a colonização e seu impulso no processo de escravização dos negros africanos.

Nem por isso Maria Rita Kehl perde de vista o caráter “inovador” de Bolsonaro e seus seguidores. Afinal de contas, nunca antes – nem mesmo na ditadura militar – um presidente da República mostrou-se tão sádico no “gozo com o sofrimento – eventualmente, a morte – alheio”. Se a sociedade brasileira sempre foi perita na normalização da barbárie, os anos de Bolsonaro no governo adicionaram uma nova camada de “banalidade do mal”.

A noção foi criada por Hannah ­Arendt para destacar o caráter quase naturalizado, sem implicações subjetivas, do “mal” cometido pelos burocratas nazistas. A psicanalista brasileira a retoma reintroduzindo, porém, o papel ativo e consciente dos agentes que “banalizaram” a maldade no Brasil contemporâneo, entre eles o próprio ex-presidente.

TEMPO ESQUISITO. Maria Rita Kehl. Boitempo Editorial (192 págs., 65 reais)

Maria Rita Kehl nos mostra que, mais que uma política da barbárie, estivemos diante de uma mobilização dos impulsos mais destrutivos alocados no inconsciente de parcelas expressivas da sociedade brasileira. Muita coisa já estava ali. A novidade é o modo como esses impulsos foram trazidos à tona, por meio de uma perspectiva que conseguiu se organizar como um “projeto” de sociedade com força político-eleitoral nada desprezível.

Filhos do tédio com a imaginação, os textos de Tempo Esquisito atravessam, assim, questões candentes do Brasil sob o comando de Bolsonaro. Há reflexões sobre violência policial, saúde pública, educação, desigualdades sociais, sobre a história da luta pela demarcação de terras indígenas, mas também sobre cinema, teatro, música e, claro, muita psicanálise, a ­especialidade da autora. Em conjunto, elas se configuram como peças de um quebra-cabeça que, embora incompleto, apontam para um diagnóstico coerente a respeito da experiência histórica brasileira recente.

Em seu trabalho inacabado Paris, Capital do Século XIX, Walter Benjamin – tema de um dos ensaios do livro – argumentou que, diante do “sonho coletivo” que reproduz as formas vigentes de dominação, era preciso organizar o “despertar”. É o instante em que a humanidade puxa o “freio de emergência” da locomotiva destrutiva da história, da qual todos somos passageiros.

Ora, ao mergulhar na atmosfera asfixiante dos anos de Bolsonaro no poder, Maria Rita Kehl nos ajuda a compreender e, nesse sentido, a despertar do pesadelo a que fomos – e, em certa medida, ainda somos – submetidos. Trata-se do primeiro passo para que possamos voltar a sonhar uma vida que, aí sim, valerá a pena ser vivida. •

*Fábio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Eternidade e finitude; natureza e jangada de garrafa PET; sexo e remédio de tarja preta; versos medrosos e corpos lassos. O Jardim Botânico – Poema (Todavia, 72 págs., 59,90 reais) de Nuno Ramos enlaça visualidade e escrita. Me dá mais um poema, escreve ele, ecoando-nos.

Em As Herdeiras (DBA, 308 págs., 72 reais), a espanhola Aixa de la Cruz retoma a ideia das irmãs que se reencontram na casa da infância para, naquele espaço, dividir heranças palpáveis e não palpáveis. Para costurar o romance ela usa, sobretudo, a linha tênue entre loucura e lucidez.

O desapego pregado com graça pela sueca Margareta Magnusson não busca, como o minimalismo de Marie Kondo, a organização. O mantra de O Que Deixamos Para Trás (Intrínseca, 128 págs., 39,90 reais) é o de que não se deve guardar as coisas que ninguém mais parece desejar.

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Para decifrar o pesadelo’

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