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Palco filosófico

Viviane Mosé frequenta, com notável desenvoltura, uma zona fronteiriça onde se cruzam a filosofia, a poesia e a fama

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Escrita. Mestre e doutora em filosofia, a autora volta à editora Civilização Brasileira – Imagem: Nando Chagas
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O quintal da casa parece ter um palco. Pode ser que seja apenas um degrau de cimento que leva ao quartinho de tranqueiras. Ou um desnível no gramado em que se plantou o jardim. Mas, para a menina que mora na casa, a elevação é um palco. Para ela, abrem-se as cortinas, há holofotes iluminando sua performance, sonoplastia acompanhando seus movimentos e público atento, à espera do que ela terá a dizer.

Estamos nos anos 1960, em Vitória, no Espírito Santo. A menina chama-se Viviane Mosé, ainda nem sequer completou 4 anos e, nessa primeira apresentação, em cima daquele palco, percebe bem à sua frente, na primeira fila, um ­assento vazio. A ausência é da mãe, que não foi assisti-la. O vazio, por um instante, tira Viviane do prumo, mas o ­espetáculo tem de continuar.

Durante os primeiríssimos anos da infância, Viviane Mosé não teve figura materna por perto. Tudo ia muito mal quando minha mãe soube que eu viria ao mundo. Então, não quis que viesse. Mas eu me impus a ela. Que declinava, diz, de modo pontuado, quase gaguejando, em um poema em prosa do recém-publicado Meu Braço Esquerdo: Um Sim à Vida – que marca o retorno da autora à editora Civilização Brasileira.

Meu Braço Esquerdo. Viviane Mosé. Civilização Brasileira (266 págs., 59,90 reais) – Compre na Amazon

A mãe retornou quando a filha completou os 4 anos. Com a chegada dela, a família reunida conversava sobre tudo, inclusive sobre mitocôndrias – porque o pai, à época, cursava o supletivo para obter o diploma do Ensino Médio. “Eram assim as conversas do almoço, sempre à mesa, com assuntos que iam de química a história, de física a literatura, Jorge Amado, por quem meu pai era apaixonado”, relata, em entrevista a CartaCapital.

Aos 16 anos, Viviane foi admitida no curso de psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. A primeira aula a que assistiu foi de filosofia, que a cativaria para a vida toda.

Não demoraria até que estivesse com um microfone à mão, diante de 2 mil pessoas, em uma assembleia estudantil. A partir dali, subiria também nas mesas do refeitório da faculdade para militar. Como chamariz para as mensagens que tinha a passar, declamava poemas de autoria própria.

Saiu logo de casa e foi morar sozinha, porque, naqueles anos 1970, 1980, “o bacana era transar com todo mundo, a liberdade sexual estava na moda”. Sustentava-se por meio da máquina de costura que tinha consigo e, aos 19 anos, vivia com um namorado. “Então, com aquela idade, eu já era uma mulher casada, tá me entendendo?”, conta rindo, como se considerasse tudo isso, agora, um absurdo.

As ruas de Vitória, as mesas de refeição, os palanques de assembleia ficaram pequenos para Viviane Mosé. Ela já gozava de certa fama na cidade, concedia entrevistas a jornais locais, estava na boca de muitos capixabas. Formada, então, quis aventurar-se e mudou-se para o Rio, onde entrou na pós-graduação em filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A Espécie Que Sabe: Do Homo sapiens à Crise da Razão. Viviane Mosé. Civilização Brasileira (208 págs., 54,90 reais) – Compre na Amazon

Na capital fluminense não demorou para relembrar os tempos de declamação. Frequentou uma oficina literária do ­poeta Chacal, no Parque Lage, que a ­levou para o CEP 20.000, evento permanente de poesia fundado em 1990 e ­vivo até os dias de hoje. Viviane Mosé fez o que sempre soube fazer: subiu no palco.

“Eu era uma poeta de fala, e o CEP 20.000 é um evento de fala. Eu já tinha de 27 pra 28 anos, e a maioria do pessoal não passava dos 20. Eu era a coroa! Tornei-me uma referência, dava autógrafo na praia, no Posto 9”, recorda.

Nessa crista da onda, Viviane Mosé tinha obtido os títulos de mestra e doutora em filosofia, e passou a receber pedidos de celebridades, como ­Glória Maria, Drika Moraes e Enrique Díaz, ­para que lhes desse aulas de filosofia, às vezes em troca de parcerias em peças ­teatrais, às vezes por um bom pagamento em dinheiro. Quem diria! Filosofia pode, sim, dar dinheiro…

Seu nome passou a ser mencionado aqui e acolá, até chegar aos ouvidos de gente que faria toda a diferença em sua trajetória. Roberto Irineu Marinho, um dos sócios do Grupo Globo, viu fotografias e poemas da “musa Mosé”, conforme vinha impresso no caderno Ela, do jornal O Globo, e abriu as portas de sua casa à filósofa. Viviane acabou por dar aulas também para ele e para um grupo de diretores de televisão.

Dali, não custou muito para que levasse seu conhecimento e seu modo de pensar até um dos programas de maior audiência do País: o Fantástico. Entre 2005 e 2006, conduziu Ser Ou Não Ser, quadro em que apresentava ideias filosóficas, instigava o pensamento livre e discutia educação. A filósofa tornava-se, definitivamente, a filósofa famosa.

Mas o que, afinal de contas, Viviane Mosé compartilhou nas aulas e disse para que ganhasse tal projeção?

Outro livro seu, também recém-publicado, talvez responda à pergunta. A Espécie Que Sabe: Do Homo Sapiens à Crise da Razão – reedição da obra originalmente intitulada O Homem Que Sabe, e que trocou de título por questões feministas – narra a história da filosofia ocidental.

Existo, logo penso. Entre 2005 e 2006, ela conduziu o quadro Ser Ou Não Ser, no Fantástico – Imagem: Redes Sociais/TV Globo

Vai desde os pensadores da Grécia Antiga, passando pelo Iluminismo, até nomes mais recentes como Michel ­Foucault. Mas a figura crucial, tanto no livro quanto no prisma geral de Viviane Mosé, é senão outro que Friedrich ­Nietzsche, o ­bigodudo que está para muito além da afirmação de que Deus morreu.

O filósofo, que maravilhou a jovem Viviane, que a fez delirar, como ela diz no livro, por inverter a perspectiva do “penso, logo existo” cartesiano para um “existo, logo penso”, também a inspira a abordar a vida pelo invés.

O método de Viviane é ousado nas ideias e nas palavras que as expressam, assim como Nietzsche. Ela, assim como o mestre, frequenta uma zona fronteiriça entre filosofia e poesia, lugar de fala que lhe confere um poder notável.

Em A Espécie Que Sabe, por exemplo, Viviane Mosé propõe a invenção de um mundo novo não por quem o vem construindo e destruindo há séculos:

Viviane, que sempre se sentiu à vontade com um microfone na mão, viu seu caminho mudar ao ser convidada a dar aulas para celebridades

Ouvi que fazer filosofia era impossível para nós brasileiros sem tradição. […] Quem sabe os selvagens alegres, os exóticos […], cujos corpos desfilam pelas ruas como se dançassem, tenhamos condição de romper o niilismo das tradições. Acreditar em um mundo possível e criá-lo é a tarefa não de um ser humano, mas de uma cultura afirmativa, como penso ser a nossa.

Estão no parágrafo acima a ressignificação da selvageria, do exotismo, e a imagem análoga da dança, ingredientes textuais para fazer os leitores repensarem e imaginarem. Trechos assim são abundantes em seus livros e também em suas falas, várias ­disponíveis em ­vídeos na internet ou nas ­muitas palestras que Viviane Mosé oferece para grandes eventos e empresas.

Um de seus próximos atos será o livro que vem montando na própria cabeça e cujos argumentos ela expõe nessas falas que oferece. Trata-se de um ensaio para debater o problema da solidão das crianças, que, de modo geral, já são carentes da figura paterna e passam a ficar muitas vezes por sua própria conta e risco, agora que as mães, com justiça, garantiram lugar no mercado de trabalho.

O problema social identificado por Viviane lembra o problema particular por que ela mesma passou quando subiu em seu primeiro palco e a mãe não estava presente para aplaudi-la. Será, parece, um apelo para que não deixemos as crianças sozinhas, à mercê. As cortinas estão abertas para Viviane Mosé e as crianças, que têm muito a ensinar. •

Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Palco filosófico’

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