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Palavras do pai

O chileno Alejandro Zambra explora, em ‘Literatura Infantil’, temas como amizade masculina, futebol, brigas, pescarias e, sobretudo, paternidade

Palavras do pai
Palavras do pai
Experiência própria. O autor atravessou a pandemia com um filho pequeno em casa – Imagem: Rodrigo Jardón
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Mais do que um livro sobre infância, Literatura Infantil – Cartas ao ­Filho, do chileno ­Alejandro Zambra, é sobre ser um homem adulto. O tema da masculinidade predomina, mesmo quando é tratado de modo sutil. A paternidade é o fio condutor a alinhavar uma discussão que passa não apenas pela transformação do narrador em pai, mas pelo seu papel de filho. Ao longo dos textos, de distintos gêneros, está presente um universo muito masculino, que inclui histórias sobre futebol, brigas, pescarias e namoradas.

O melhor deles é o conto O Menino Sem Pai. Escrito em terceira pessoa, o texto nem tem o narrador como personagem nem soa autobiográfico. Indica, assim, tratar-se de uma fabulação. Quando Zambra se distancia de si – ou finge distanciar-se –, afloram as qualidades que fazem dele um dos principais nomes da literatura latino-americana.

Nesse conto, dois garotos do mesmo bairro tornam-se amigos. Darío tem medo de um cachorro da vizinhança. Ao desviar seu trajeto, passa na frente da casa de Sebastián, o menino sem pai. Embora Sebastián inspire o título, a história dedica mais atenção a Darío. É a partir do ponto de vista dele que o leitor descobre a desolação de ver uma amizade chegar ao fim sem explicação e sem ­possibilidade de reaproximação.

O término de uma amizade é um tema universal. A tristeza infantil, no entanto, poucas vezes é narrada com voz tão convincente como neste texto. Darío e Sebastián­ desenvolvem uma brincadeira saudável – ainda que escatológica, como é próprio da infância – por meio da troca de cartas.

Literatura Infantil. Alejandro Zambra. Tradução: Miguel Del Castillo. Companhia das Letras (224 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

“Faz dias que não tenho notícias suas,­ seu merda, com certeza alguém deve ter jogado um saco de cocô e de vômito na rua, e o fedor de bosta de cavalo e peido alemão ainda não saiu de você”, escreve um satisfeito Darío. A troca é interrompida pela mãe de Sebastián, uma secretária que cria o filho sozinha. Zelosa ao extremo, ela vê perigo na influência do amigo.

Se Sebastián fosse – como enfatiza o título, ao avesso – um menino com pai presente, será que ele teria mais liberdade? A história não carrega, porém, nenhum tom acusatório contra essa mãe que tenta fazer o seu melhor.

Zambra é corajoso também em Arranha-céus, que avança sobre uma temática que ganhou até um “gênero” próprio no mercado editorial: histórias pop sobre apaixonados por livros. O autor não se intimida e cria uma narrativa que envolve um estudante que frequenta as aulas de um professor excêntrico de literatura; uma leitora misteriosa; uma livraria de nicho que maltrata quem busca livros ruins; e um casal que se conhece em circunstâncias livrescas.

Em meio a tudo isso, e falando sobre o jovem que, no conto, decide deixar a casa do pai e explica suas razões por meio de uma carta – mais uma vez, essa forma de comunicação se faz presente –, o autor acaba por se expor mais.

Dividido em duas partes, Literatura Infantil parece dois livros diferentes. O primeiro, mais fragmentado e autocentrado; o segundo, mais narrativo. Na primeira parte, Zambra escreve sobre a experiência de ser pai de um menino pequeno na pandemia. Escrever sobre esse processo é, em essência, escrever sobre a linguagem. O resultado é fascinante, por se tratar de uma descoberta dupla.

Os raciocínios infantis precisam da linguagem para chegar ao outro, o pai. Mas as falas das crianças – com um repertório limitado, em constante aquisição – acabam sendo criativas e belas, porque tentam dar conta de um mundo muito maior do que as palavras ensinadas – e escritas – pelo pai. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

A Angústia do Rei Salomão (Todavia, 288 págs., 89,90 reais), escrito por Romain ­Gary (1914-1980), sob o pseudônimo de Émile Ajar, e publicado em 1979 na França, ganha nova vida no Brasil. Na história, um jovem taxista relaciona-se com um velho endinheirado que se tornou seu passageiro.

O escritor Ronaldo Correia de Brito, que também é médico, lança pela Alfaguara o romance Rio Sangue (320 págs., 89,90 reais), passado no interior cearense e protagonizado por um padre em conflito com a fé. “Às vezes”, começa ele, “de algum riacho obscuro surge o sangue de um crime.”

É na linhagem contemporânea dos romances que enlaçam vida íntima e olhar sociológico que se insere Os Meninos Adormecidos (Fósforo, 208 págs., 79,90 reais), do francês Anthony ­Passeron. A narrativa retorna ao tempo da descoberta do vírus HIV, na década de 1980.

Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Palavras do pai’

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