Cultura
Palavras de toda uma vida
O rapper Rico Dalasam reemerge com projetos menos comerciais, nos quais rememora a experiência da orfandade


Ele saiu direto da maternidade para o Orfanato Tia Guga, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Como sua mãe era usuária de drogas, passou os primeiros anos de vida com acompanhamento médico. Nos registros do abrigo, o pai constava como tendo sido assassinado.
Nessas casas, os órfãos vão crescendo enquanto aguardam ser acolhidos por famílias. O tempo corre. E, se adoção acontecer, pode dar certo ou errado. Jefferson Ricardo da Silva, o Rico Dalasam, era bem pequeno quando Luzia passou a frequentar o local e criou afeição por ele. Um dia, ela o levou para conhecer seu grupo familiar. Quando ele tinha 5 anos, a mãe da jovem, Dona Ana, o adotou.
“Todo o meu desenvolvimento criativo está relacionado aos momentos iniciais da minha história. Preciso voltar no Tia Guga, olhar para esse primeiro ambiente onde nasceram minhas noções atuais de amor, troca e ausência que têm um efeito direto sobre a forma como me relaciono, me organizo, me identifico e reajo”, diz Dalasam em entrevista por telefone a CartaCapital.
O rapper, que está completando dez anos de carreira, vem, desde 2020, realizando um trabalho no qual, segundo suas próprias palavras, saiu do hitmaker, “da música que tem potenciais virais”, para se tornar um poeta. “Dessa percepção social, cultural e artística que estava apresentando tirei várias camadas estéticas. A centralidade deixou de estar na narrativa e passou a estar na palavra.”
Os álbuns Dolores Dala Guardião do Alívio (2021), Fim das Tentativas (2022) e Escuro Brilhante, Último Dia no Orfanato Tia Guga (2023) exprimem o processo autobiográfico em que Rico Dalasam mergulhou nos últimos anos, com reflexões sobre orfandade e trocas afetivas.
Trata-se de um conjunto bem diferente de seus trabalhos anteriores
– constituído por três EPs e um álbum –, que apresentavam um artista disposto a atingir as massas com músicas populares, com letras fáceis, para consumo rápido. “Queria um espaço mesmo sabendo não ter espaço por ser eu um jovem gay”, pontua.
Em 2017, ele viu sua música Todo Dia, na voz de Pablo Vittar e dele, se tornar um dos maiores sucessos do ano. A faixa foi um estouro no streaming e, em dois meses, tinha passado de 50 milhões de reproduções. A história do primeiro sucesso, no entanto, acabou mal: Rico Dalasam moveu uma ação judicial para brigar pelo que considera um pagamento justo pelos direitos da canção.
A pendenga foi resolvida na Justiça três anos depois – o single chegou a ser retirado temporariamente do streaming. Nesse período, enquanto Pablo Vittar estourava, Rico, que chegou a ser “cancelado” nas redes sociais, se recolhia.
“Olhando para trás, vejo que foi um momento de redimensionar tudo”, resume ele, ao falar sobre o imbróglio, que contribuiu para que repensasse a carreira. Tudo que sofreu ao lidar com a situação faz parte do processo que o conduziu ao momento atual. “Minha música hoje é um poema confessional. Ela não está pautada pela lógica do mercado. Meu disco não é exatamente de rap, é de vários gêneros”, define-se.
Rico pensa expandir para outras linguagens sua história. “Não sei se um álbum ainda me contempla”, diz. No meio do ano, ele criou um podcast com cinco episódios, no qual narra seus tempos de orfanato. No projeto, Dona Ana, sua mãe adotiva, também conta a sua vida em dois deles.
“Minha música hoje é um poema confessional. Ela não está pautada pela lógica do mercado. Meu disco não é exatamente de rap, é de vários gêneros”
“A inclinação afetiva dela fez com que a gente se aproximasse e passasse a ser mãe e filho”, diz. Dona Ana viveu, ela própria, uma história de separação familiar após a morte do pai: ela e seus oito irmãos foram doados. Rico Dalasam foi acolhido por Dona Ana já como mãe solteira de quatro filhos biológicos. “A grande curva da minha história está no nosso encontro”, afirma.
Mesmo se integrando a uma família adotiva, Rico mostra disposição emancipatória. Na casa onde morava, ele, com 12 anos, montou, em um cômodo, um salão de cabeleireiro. “Tinha muita habilidade e comecei a depurá-la no bairro, fazendo cabelo a 5, 10 reais. Isso foi produzindo alguma renda para mim”, recorda.
O rap veio mais ou menos nessa época, sem muita pretensão. “Minhas memórias musicais são dessas canções que vão tocar na periferia da Zona Sul dos anos 1990. Ouvia muito pagode e a música contestadora do rap. Escrevia influenciado pelo que eu ouvia”, conta. Ao frequentar as batalhas de rap em São Paulo, diz ter percebido aptidão não só para a escrita, mas também para a palavra no improviso.
Quando entrou na faculdade de Artes Visuais do Senac, em 2011, já era um requisitado cabeleireiro. Com a finalização do curso, decidiu gravar suas rimas. “Passei uma parte de 2014 fazendo isso e, em 2015, eu já tinha trabalho na música”, afirma.
Agora, Rico Dalasam, aos 35 anos, dá novos passos além de subir ao palco para cantar. No domingo 3, ele falará sobre sua vida no Festival ZUM, evento com oficinas, fotolivros e debates ligados à arte, realizado no Instituto Moreira Salles da Avenida Paulista.
“É minha estreia num encontro com artistas visuais. Eu ia a esses lugares apenas como alguém que consome aquilo”, diz Dalasam. “São fazeres artísticos que dão conta desses vazios, dessas ausências que eu sinto. Estou indo na direção daquilo porque me sinto um predestinado.” •
Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Palavras de toda uma vida’
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