Cultura

Ovelha loira da bossa nova, Claudette Soares lança álbum aos 82

Aos 82 anos, Claudette Soares volta ao disco e relembra sua trajetória como artista dissidente da canção brasileira

Aos 82 anos, a cantora é a primeira a dedicar um disco inteiro à obra do parceiro de geração Silvio Cesar, hoje com 80 anos
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João Gilberto à parte, não era fácil aderir à bossa nova se você não fosse um rapaz branco da Zona Sul carioca. Prova viva dos percalços dos dissidentes é a carioca Claudette Soares, 82 anos de vida (72 de carreira), que acaba de lançar “Se Eu Pudesse Te Dizer Tudo Que Sinto”.

O disco é dedicado à obra de outro bossa-novista dissidente, o mineiro interiorano Silvio Cesar, autor da célebre balada “Pra Você” (“eu nem sei bem por que/terminou tudo assim/ah, se eu fosse você/eu voltava pra mim”), hoje com 80 anos.

De voz macia e sussurrada, Claudette iniciou-se nos discos de 78 rotações por minuto em 1954, quatro anos antes da eclosão da bossa nova, inicialmente interpretando baiões que faziam sucesso na voz agreste de Luiz Gonzaga.

Ganhou o apelido de “princesinha do baião”, que não raro adquiria cunho pejorativo. “É como se fosse alguma coisa completamente horrorosa, fora dos padrões musicais, uma coisa brega, vamos dizer assim”, ela relembra as primeiras agruras. 

No início dos anos 1960, Claudette foi destacada para emplacar a bossa nova em São Paulo. “Eu vim para fazer o movimento, a mando do (jornalista e compositor de bossa nova) Ronaldo Bôscoli”, conta. Seguia os passos do pré-bossa-novista negro Johnny Alf, e logo convenceria a vir para cá também a colega negra Alaíde Costa, outra militante da bossa que encontrava dificuldades para se localizar no movimento branco e masculino dos jovens de Copacabana e Ipanema.

Johnny, Claudette e Alaíde permaneceram em São Paulo por toda a vida, mas não chegaram a constituir uma movimentação sólida e coletiva.

Em São Paulo, Claudette só pôde lançar um primeiro álbum cheio em 1964, dez anos depois da estreia nos 78 rpm. Em Claudette É Dona da Bossa, interpretou Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Baden Powell e… Silvio Cesar.

No mesmo ano estreava em disco, no Rio, Nara Leão, também alguns anos atrasada em relação à ala masculina da bossa. Os discos de Claudette nessa fase tinham como principal arranjador o jovem Cesar Camargo Mariano, futuro marido de Elis Regina.

Na contramão do movimento elitista, ela gravou Roberto Carlos e Jorge Ben

Ovelha loira da turma, Claudette não deixou de lançar farpas para o núcleo ativo da bossa. Em 1965, gravou “A Resposta”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, um ataque aos bossa-novistas mais engajados politicamente (como Carlos Lyra): Falar de terra na areia do Arpoador/quem pelo pobre na vida não faz nem favor/falar do morro morando de frente pro mar/não vai fazer ninguém melhorar. 

A artista diz que “A Resposta” não causou controvérsia, o que aconteceria três anos mais tarde, no lançamento de Gil-Chico-Veloso por Claudette Soares, todo dedicado a canções dos jovens Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, os dois últimos à entrada do movimento tropicalista. “Falaram que eu era oportunista. Que só o Chico tinha meu perfil, os outros não. O tempo provou que tudo bem, que não tinha nada a ver”, afirma.

A guinada de repertório mostrava uma intérprete disposta a não ficar confinada à bossa, e foi mais um pretexto para torcer narizes bossa-novistas, junto do fato de ela ter se mudado para São Paulo. “Eu tocava muito em novelas da Globo. (O produtor global) Mariozinho Rocha, que foi meu grande diretor na Odeon, disse uma vez para mim: ‘Você virou paulista’. Não entendi por quê. Ele recriminava muito eu e Dick. A partir daquele momento, eu nunca mais entrei em nada da programação da Globo.”

O LP de músicas de Gil, Chico e Caetano

Viria então a principal reviravolta da história de Claudette, algo que ela tem em comum com Silvio Cesar. Em 1969, a cantora associou-se ao arranjador Antonio Adolfo, que tentara criar um gênero batizado de toada moderna e participava então da avalanche cultural chamada pilantragem, liderada pelo popularíssimo Wilson Simonal. Claudette abraçou um ecletismo que a fez capaz de gravar, num mesmo disco, os antípodas nordestinos Luiz Gonzaga (Baião) e Dorival Caymmi (Canoeiro). 

Nessa fase, o som da artista integrou a invenção do chamado samba-rock, de que Jorge Ben (Jor) seria expressão maior. Dele, em três discos brilhantes lançados entre 1969 e 1970, Claudette gravou “O Cravo Brigou com a Rosa”, “Que Maravilha”, “Sem Bronquear” e “Carolina, Carol Bela”. Esta última seria retomada em 2001 pelo DJ paulistano Marky, e faria sucesso maciço nas pistas de dança ao redor do mundo no início do século. A voz de Claudette estava lá, sampleada. 

No mesmo período, o compositor Silvio Cesar, praticante de uma variante da bossa apelidada de sambalanço, também se aproximava, sem querer, do samba-rock, com temas fanfarrões como Beco Sem Saída e O Machão (1971). “Fui descobrir que essas músicas eram samba-rock, olha só”, surpreende-se Silvio. “O pessoal de São Paulo me chamou pra cantar em shows de samba-rock, falei ‘ah, não vou, não, não sou do samba-rock, imagina’.”

A guinada musical era criticada mesmo dentro da casa de Claudette. “Clara Nunes ia muito lá em casa, e minha mãe dizia: ‘Fala pra minha filha cantar samba igual a você’.” Para ela, todo mundo cantava melhor que eu”, ela ri.

É nesse mesmo momento que se forma um triângulo musical entre Claudette, Silvio e um certo Roberto Carlos, que gravou e transformou em sucessos duas canções do compositor, “Pra Você” (1970) e “O Moço Velho” (1973).

Enquanto isso, Claudette mergulhava no cancioneiro de Roberto, gravando “Como É Grande o Meu Amor por Você” (1969), “As Flores do Jardim da Nossa Casa” (1970), “Não Quero Ver Você Triste” (1971) e “Proposta” (1974). A ira bossa-novista foi despertada por duas canções feitas por Roberto para Claudette gravar, “De Tanto Amor “(1971) e “Você” (1974). “Imagina o escândalo que foi, ‘como?, você não é bossa nova?’”, lembra Claudette.

Ela lembra as dificuldades dessa decisão: “’De Tanto Amor’ é um caso típico de uma gravadora com um produtor que acha que sabe tudo. Fiquei mais de seis meses no teatro cantando a música, as pessoas saíam enlouquecidas. E ele não queria gravar, porque não ia vender, porque a música era feia”.

O produtor de seus discos nessa fase era Roberto Menescal, um dos rapazes da Zona Sul bossa-novista. Depois do disco de 1971, Claudette incompatibilizou-se com a gravadora Philips e mudou-se para a Odeon, onde gravaria dois discos em dupla com o pré-bossa-novista Dick Farney, também radicado em São Paulo. 

Uma nova fase de grande produtividade discográfica só aconteceria nestes anos 2000, pelas mãos de produtores mais jovens, como Thiago Marques Luiz, que conduz Claudette no disco para Silvio Cesar e num CD dedicado à obra de Maysa, que deve sair ainda neste fim de ano.

A cantora reflete sobre seu papel atual na música brasileira: “Embora o tamanho esteja igual, hoje me respeitam mais pela idade. Pelo tamanho nunca vão respeitar”. A brincadeira refere-se ao menos de 1,5 metro de altura, que rendeu o título de um dos LPs de 1969, “Feitinha pro Sucesso ou Quem Não É a Maior Tem Que Ser a Melhor”.

“Ela transformou minhas humildes canções em obras-primas”, afirma Silvio Cesar

Silvio Cesar, classificado de “chique” pela intérprete, faz também sua reflexão: “Sempre fiz a melhor música que pude, com a letra mais bonita, mais filosófica e mais simples de entender. Se eu pudesse teria escrito minha obra inteira com 50 palavras. Mas não consegui. Tem gente que usa muitas palavras raras, eu sempre gostei de rimas pobres, amor com flor, paixão com coração, para as pessoas entenderem”.

Exemplo é “Palavras Mágicas”, que abre o CD de Claudette: Não quero o meu amor/assim tão humilhado/por isso não direi/abracadabra, abre-te sésamo, Shazam/eu só direi te amo ontem, hoje e amanhã. O desabafo Eu Quero Que Você Morra é ponto alto, com temática que as canções populares não costumam muito visitar: Tudo aquilo que eu guardei eu vou falar/pois não posso mais sofrer assim/eu quero que você morra/aqui dentro de mim. 

Feliz, o autor derrama-se em elogios à primeira intérprete que grava um disco inteiro em sua honra: “Ela cantou com alma, com coração, transformou minhas humildes canções em obras-primas”.

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