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Ouvido poético e voz enfática

Quem é Leila Mottley, a autora que, aos 19 anos, entrou para a lista de mais vendidos do New York Times

Ouvido poético e voz enfática
Ouvido poético e voz enfática
Inspiração. A jovem escritora usou como ponto de partida um caso real de abuso sexual envolvendo a polícia em Oakland, nos EUA, sua cidade natal – Imagem: Magdalena Frigo
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“Antes de virar as costas e ir pra rua”, diz Kiara, sobre sua última tentativa desesperada de encontrar um emprego como atendente de loja, “me certifico de dar um soquinho no vidro do caixa. Não tão forte para que quebre, mas forte o suficiente para que o pessoal de vinte e poucos me veja e fique com medo.”

Kiara tem 17 anos e é a protagonista do romance a de Leila Mottley, que era apenas dois anos mais velha que sua personagem quando escreveu o livro, lançado em língua inglesa em 2022.

Antes mesmo da publicação, Criaturas Noturnas acumulava fãs entre escritores como Dave Eggers e Ruth Ozeki, com seu retrato da vida difícil na cidade californiana de Oakland, nos Estados Unidos. Depois, entrou para a lista dos mais vendidos do New York Times, foi escolhido para o Clube do Livro da Oprah e foi traduzido para vários países – agora, chega ao Brasil.

Leila Mottley, hoje com 22 anos, fala com o Observer de forma fluente e segura em seu apartamento elegante e bem iluminado. Antes de ter completado 20 anos, tinha um romance na rua e era reconhecida como uma poetisa talentosa, com performances no YouTube. De onde veio esse talento precoce?

“Não sei”, diz. “Desde que aprendi a escrever, escrevo poemas e histórias Nunca me senti mais talentosa do que a média dos adolescentes, mas acho que isso depende de quem você conhece. Eu estava cercada por um bando de jovens realmente talentosos. Então nunca me senti especial.”

Criaturas Noturnas é escrito com o ouvido de uma poeta e o senso de personagem, estrutura e ambiente de uma romancista. Kiara é negra e mora em um bairro conflituoso, onde os apartamentos têm avisos de despejo pregados nas portas porque os aluguéis, turbinados por uma gentrificação velada, não cabem nos bolsos de uma comunidade marginalizada. Ela cruza a cidade em busca de trabalho:

“Nos dez minutos que leva pra chegar do outro lado da zona leste de Oakland, acabo entrando no ritmo do ônibus, no jeito que ele me embala de um lado para o outro, como imagino uma mãe fazendo com o filho enquanto ainda tem paciência pra não dar um chacoalhão nele”.

Esta frase, que aparece nas primeiras páginas, é inserida com tal leveza no texto que você pode ocultar uma consciência moldada pela tragédia. O pai de Kiara, um ex-Pantera Negra (movimento político fundado em Oakland), morreu de câncer de próstata, ignorado. Sua mãe está na prisão. Kiara fica sob os cuidados do irmão amoroso, mas irresponsável.

A piscina local está cheia de merda, e ela faz o que pode para cuidar de um garotinho que vive de salgadinhos desde que sua mãe drogada desapareceu. As tentativas de Kiara de pagar o aluguel a levam a um confronto terrível com uma força policial corrupta e abusiva, o que se baseia em casos reais.

A semente do romance foi plantada em 2016, quando quatro policiais foram demitidos e outros sete suspensos em um caso de abuso sexual em Oakland. O caso, que teve repercussão na mídia, marcou muito a autora.

“Eu era uma jovem adolescente, e foi um momento formativo para mim”, diz. “Lembro-me de dar muita atenção ao caso e perceber que a mídia focava desproporcionalmente o impacto no departamento de polícia e o que isso significaria para o relacionamento entre polícia e comunidade. E lembro-me de pensar: ‘Bem, e essa garota? E os milhares de outros sobreviventes que nunca têm as histórias contadas na mídia ou chegam a um tribunal?’”

Criaturas Noturnas Leila Mottley. Tradução: Bianca Gonçalves. Companhia das Letras (328 págs., 79,90 reais) – Compre na Amazon

O passado de Leila é muito diferente – não encontro sinais de turbulência em sua vida aparentemente sem atritos. Irmã caçula, ela foi criada por uma mãe professora e um pai consultor com uma atividade paralela na escrita

Ela passou rapidamente pelo Ensino Médio especializado em Artes, cujo cronograma envolvia aulas acadêmicas pela manhã e a forma de arte escolhida à tarde. Depois de dois anos de flerte com teatro, mudou para literatura e passou a escrever três horas todos os dias.

Aos 16 Leila formou-se, tendo ­editado uma antologia de jovens escritores ­queer, e foi a poeta laureada da juventude de Oakland. Aos 17 estava matriculada no Smith College, famosa instituição de artes liberais para mulheres em ­Massachusetts, do outro lado do país.

“A maioria das pessoas nem pensou em me perguntar quantos anos eu tinha”, afirma. “Só meus amigos mais próximos sabiam.” Leila conheceu seu parceiro no primeiro dia de aula, porque eles moravam na mesma casa.

Um ano e meio depois de formada, veio a pandemia e ela, então, voltou para Oakland, onde seu parceiro se juntou a ela em um apartamento próprio.

Uma característica fascinante de seu romance é que, apesar de todo o conflito em termos de classe, pobreza e injustiça social, gênero e sexualidade passam sem comentários.

Em certo ponto, Kiara faz amizade com uma mulher alta e bonita com extensões de cabelo cor-de-rosa que combinam com a sua roupa. Ela é trans? Sim, confirma a autora, mas isso nunca é explicitado. “Essa é a realidade aqui”, dando de ombro. “Você não precisa declarar-se da mesma forma que faria em outro ambiente.”

Criaturas Noturnas é tão político que me pergunto o quão política é Leila fora da literatura. “Não me descrevo como ativista”, diz, “porque sei quanto trabalho, tempo e energia são investidos nesse tipo de organização, e não afirmo fazê-lo. Mas admiro muito os organizadores, e apoio e participo de protestos.”

Criaturas Noturnas reflete essa sua agitação e, embora encare ativamente a injustiça social, consegue, de alguma forma, não ser deprimente. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ouvido poético e voz enfática’

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