Cultura

Outro tom

O baiano Tom Zé, que era o avesso do avesso do avesso de uma estrela

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A primeira vez que Tom Zé subiu num palco foi no final dos anos 1950, em Salvador. Ele havia deixado a pequena Irará, no Recôncavo, para ganhar a vida na capital, Salvador. Tom Zé ainda se chamava Antônio José Santana Martins quando entrou em cena para participar de um programa de calouros chamado Escada para o Sucesso.

Só pra chatear, compôs e cantou uma música chamada Rampa para o fracasso. Não foi um sucesso estrondoso, mas uma surpresa para todos, uma novidade, uma ousadia. Ninguém esperava por essa. 

Saiu dali e matriculou-se num curso de História da Música. Olhos miúdos, olhar assustado, bem no jeitinho dele. Tom Zé perambulou por Salvador e foi fazendo amizades com os músicos de lá: Caetano Viana Telles Veloso, Gilberto Passos Gil Moreira, Maria Bethânia e Maria da Graça, a Gracinha, aliás, Gal Costa.

No início dos anos 1960, fez com esses novos baianos, um espetáculo no Teatro Vila Velha que entrou para a história: Nós, por exemplo. Depois, todos voaram para São Paulo trazendo as malas de couro cheirando mal, cheias de sonhos e de ilusões.

Teatro Record, São Paulo, 10 de dezembro de 1968. Tom Zé está de novo no palco. Agora, como um rei. Com uma coroa de papel prateado na cabeça, assustado, meio desorientado, ele olha para os refletores, para as câmeras da TV Record, para a fama. Acaba de ganhar o primeiro lugar no IV Festival da Música Popular Brasileira com a música São São Paulo. Tom Zé está apavorado com o sucesso e não tem muitas palavras. A única reação é dizer, repetidamente: “Estou com saudade da minha mãe”.

 

Tom Zé tinha 29 anos, muitas ideias na cabeça e uma viola de ouro nas mãos. Morava num quarto na rua Bela Cintra, na pensão de um alemão conhecido como senhor Curt. Tom Zé ficou todo cheio de graça com aquele sucesso, tão de repente.

Comprou um Simca Chambord e passou a desfilar pelas ruas da metrópole, escutando a todo momento, no rádio do carro, seu grande sucesso: “São 8 milhões de habitantes/De todo canto e nação/Que se agridem cortesmente/Correndo a todo vapor/Amando com todo ódio/Se odeiam com todo amor”. A censura cortou o verso “em Brasília é veraneio”, mas Tom Zé escreveu outro: “No Norte é veraneio”, e seguiu em frente.

Gravou seu primeiro disco pela Rozenblit, uma pequena gravadora de Pernambuco, com muita sátira e bom humor. Era um Tom Zé tão simples, tão inocente que em uma das faixas – Camelô – ele para e pergunta: “Danado pode se dizer em disco?”. Na contracapa, em um texto tropicalista, afirmava: “Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade”.

Aqui começa a segunda parte da história de Tom Zé. A história da antiestrela. Brilhando, mas brilhando apenas para poucos, quietinha, quietinha, quase apagada. Tom Zé adotou São Paulo como sua filha. Enquanto seus companheiros ganhavam o mundo, ele ficava espiando a cidade da janela do seu apartamento, trabalhando artesanalmente, fazendo sons desconcertantes com serrotes, enceradeiras e liquidificadores. Um show aqui, outro ali, e nada mais.

Nos primeiros vinte anos de carreira, gravou sete discos. No segundo álbum, apesar de belezas como Dulcineia Popular Brasileira, O riso e a faca e Jimi, renda-se, apenas Jeitinho dela chegou a tocar nas rádios. Mesmo longe das FMs, o baiano de Irará continuou compondo, criando uma obra sui generis  e da maior importância. Criou versos como “Menina a felicidade/É cheia de ano/É cheia de Eno/ É cheia de hino/É cheia de ONU”, ou poemas de amor declarado a São Paulo: “Augusta, graças a Deus/Entre você e a Angélica/Eu encontrei a Consolação”.

Tom Zé continuou experimentando. No disco  Estudando o Samba, de 1976, dá um banho de criatividade, com músicas com nomes bem curtinhos: , Toc, , Ui!, Dói, , Se e Hein?

Depois veio  Nave Maria, com uma canção que dizia assim: “O mestre-sala me tomou por uma negra/ Roubou a minha noite/Para o brilho das estrelas/O mestre-sala me tomou por um poema/Roubou a minha rima/Para a musa do cinema”. E, apesar de todos esse talento, caiu no ostracismo.

Numa tarde qualquer, o jornalista Laerte Fernandes me apresentou a Tom Zé na Redação do Jornal da Tarde. Na primeira manhã, encomendei a ele uma crônica para o Caderno 2 do Estadão, que eu editava. No dia seguinte ele chegou na redação trazendo o seu texto. Um texto que começava assim:

“Ditadura, democracia, parlamentarismo… Que nome daremos a essa escravidão? Prezado, Eu não gosto do tipo de rapazinho insidioso que se esconde na Redação de um jornal para valentias que não teria coragem de dizer ao senhor aí, na sua sala da Censura, na Polícia Federal. Não pra- tico essa coragem covarde. Por isso minha argumentação é respeitosa e leal. Não espero, tampouco, que juntos passemos a praticar os papéis de caça e caçador. Talvez até o seu trabalho, assim, criasse para minha obra uma evidência maior. Mas tal e tanta não me tentam. Não. Quero somente levar ao senhor algumas considerações justas e indignadas.”

Um dia, David Byrne, dos Talking Heads, veio ao Brasil e por acaso levou para a América do Norte o disco de vinil Estudando o Samba, que só foi escutar no inverno de Nova York. Ouviu uma, duas, três vezes, pegou o telefone e ligou para o Brasil perguntando, perplexo:

– Que diabo é esse tal de Tom Zé, que nunca ouvi falar?

A partir daí, a história do compositor baiano, que teve a coragem de, no auge da censura do regime militar, colocar a foto de um ânus na capa do seu disco Todos os Olhos, mudou.

Tom Zé conquistou o mundo, ganhou as páginas do The New York Times, do Libération, da Nouvel Observateur, da Inrockuptibles, da Rolling Stone. Assim que conquistou a América, foi ao Programa do Jô e quando o gordo lhe perguntou como ele pediu um hot-dog em Nova York, ele disse simplesmente:

– Não faço a menor ideia!

Tom Zé, que um dia quase desistiu de ser compositor e retornar a Irará, pra trabalhar num posto de gasolina, voltou a compor, a fazer shows nos quatro cantos do mundo, a gravar discos e mais discos.

Depois de estudar o samba, estudou o pagode, a bossa-nova e a tropicália. Na verdade, fez pós graduação e mestrado, esse doutor em Música Popular Brasileira.

Um dia, quem diria, colocou esse cronista numa de suas canções:

Nem aquele trágico “manchei o teu nome!”

No passeio em Paquetá

No piquenique do Joá

Mas seremos a cultura

Gratos a nosso Fernando Faro

Que Ruy Castro, que Zu Ventura

Que o Danilo nos mirando

Zuza, que Homem de terno

Cabral “serca” velas e Villas Alberto

Eli-Tárik faz de Souza

 

 

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