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Outras formas possíveis de vida

Em um novo conjunto de textos, David Harvey vincula seus estudos à experiência concreta das lutas contra a espoliação espalhadas pelo mundo

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Para o geógrafo de origem britânica, o neoliberalismo, embora muito vivo, enfrenta uma crise de legitimidade – Imagem: Redes sociais
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David Harvey é um dos principais intelectuais marxistas em atividade. Poucos foram os que, como ele, avançaram tanto na compreensão das especificidades do capitalismo contemporâneo. Em conjunto, seus trabalhos sobre a “condição pós-moderna”, o “novo imperialismo” ou o neoliberalismo constituem uma das mais convincentes atualizações da crítica marxista ao mundo regido pela lógica destrutiva do capital.

Embora tais estudos revelem um panorama sombrio, marcado pela proliferação de formas de “espoliação” dos seres humanos e da natureza não muito diferentes daquelas da época da “acumulação primitiva”, descrita por Marx, ­Harvey não se deixa levar pela resignação. É o que se pode ver em Crônicas Anticapitalistas: Um Guia para a Luta de Classes no Século XXI, disponível nas livrarias brasileiras a partir da semana que vem.

O livro foi inspirado em podcast quinzenal de mesmo nome. Os 19 capítulos que o compõem foram elaborados a partir de debates com movimentos sociais e políticos dos Estados Unidos e do Sul Global – dentre eles o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra brasileiro –, ocorridos no The People’s ­Forum, sediado em Nova York.

O caráter anticapitalista da perspectiva de Harvey vincula-se, portanto, à experiência concreta das lutas que contestam o imaginário neoliberal, vislumbrando outras formas possíveis de organização da vida social.

Em Crônicas Anticapitalistas, são muitas as questões abordadas: as alianças entre neoliberalismo e extrema-direita no Brasil e no mundo; a “financeirização do poder”; as mudanças climáticas; o papel da China no tabuleiro econômico e geopolítico; a dinâmica territorial do capital; a pandemia da Covid-19; e as relações entre socialismo e liberdade, dentre outros assuntos. Harvey, em resumo, nos leva para o olho do furacão contemporâneo.

Crônicas Anticapitalistas: Um Guia para a Luta de Classes no Século XXI – David Harvey. Tradução: Artur Renzo. Boitempo (240 págs., 75 reais) – Compre na Amazon

Para o geógrafo de origem britânica, o neoliberalismo, embora muito vivo, enfrenta atualmente uma crise de legitimidade, razão pela qual seus representantes políticos não hesitam em se associar a movimentos populistas de direita – história que conhecemos bem por aqui. Agora, ao questionado “consenso” neoliberal se soma a “força” neofascista, numa combinação que, para os que estão nos níveis mais baixos da pirâmide social, não tem como não ser explosiva.

Nesse cenário, a alternativa ao capitalismo neoliberal precisa ser uma alternativa estrutural, no sentido de que, ao mesmo tempo que responde às demandas mais imediatas das classes populares, projeta os contornos de um outro tipo de sociedade. E, mais ainda, precisa ser uma alternativa global, uma vez que seria impossível alcançar tal objetivo em um país isolado.

Mesmo que o neoliberalismo seja a “forma particular” do sistema nas últimas décadas, é no próprio capitalismo que se encontra a raiz do problema. O desafio, então, é o de como coordenar ou unificar – sem mascarar a diversidade – as várias lutas e mobilizações contra a exploração que se alastram pelo mundo.

Não se trata de tarefa fácil, e Harvey é consciente disso. Para ele, a superação do capitalismo não poderá prescindir, ao menos num primeiro momento, de um longo processo de transição em que a construção do novo ocorrerá sem a demolição completa e imediata do velho. O sentido de uma “revolução” anticapitalista não é, para Harvey, acontecimento com dia e hora marcados.

Em linguagem acessível, mas sem recair no simplismo, ele nos mostra que nem tudo está perdido. O fato de que hoje é difícil imaginar um mundo distinto do atual não significa que assim continuará a ser no futuro. Eis aí, talvez, a lição mais importante destas crônicas. •

*Fabio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

A narradora de As Chaminés Tocam o Céu – Um Conto para Crianças Velhas (Todavia, 72 págs., 49,90 reais) é uma ­mulher cujos filhos são quase todos avós. A ­alinhavar o conto de Natal do francês ­Jean-Claude Grumberg estão as faltas que o passar dos anos impõe e o Papai Noel.

Faca (Cia. das Letras, 232 págs., 69,90 reais) é o potente relato de Salman Rushdie do ataque que sofrera em 2022, quando um homem tomou para si a missão de cumprir a pena de morte imposta ao autor décadas atrás. Seu estilo límpido e envolvente aparece aqui intacto.

Giovana Proença, colaboradora de ­CartaCapital, estreia na ficção com Os Tempos da Fuga (Urutau, 156 págs., 58 reais), romance protagonizado por uma mulher que teve o destino e a identidade estilhaçados pela ditadura brasileira e, após anos vivendo na Argentina, retorna ao País.

Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Outras formas possíveis de vida’

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