Cultura

Os vira-latas de celulóide

Por que afinal temos de nos envergonhar diante do cinema argentino?

'Mr. Sganzerla - Os Signos da Luz' é mais um filme brasileiro que mostra que também fazemos um cinema inventivo e fascinante.
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Fui assistir “Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz”, excelente documentário de Joel Pizzini sobre Rogério Sganzerla (1946-2004), um dos nossos gênios cinematográficos. Uai, mas temos gênios no cinema? Nosso cinema não é o mais chinfrim do planeta? Não dizia o grande jornalista Ivan Lessa, morto no último dia 8, que “o Brasil deveria esquecer o cinema”? “Somos ruins”, vaticinava Lessa. E ponto final.

Será mesmo? Depois de uma hora e meia ouvindo e conhecendo Sganzerla, cheguei à conclusão que o malfadado “complexo de vira-latas” que atinge a educação, a saúde, a ciência, a economia, a literatura, a formação e tudo quanto diz respeito ao Brasil e aos brasileiros, também vitima nosso cinema. Filme nacional? Argh, é o mesmo que uísque, uma porcaria, esqueça, não vale a pena sair de casa para ver este lixo. Mas o que tem de verdade nisso e o que tem de puro complexo de inferioridade?

Diante de mim, na tela, vi um homem com ideias fascinantes. Senti vontade de anotar tudo o que Sganzerla falava. “O povo brasileiro não pode de forma alguma abdicar da síntese de sua alma, que é a intuição”. “Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço”. “Quem não entendeu agora não vai entender nunca”. Fã de Orson Welles, Noel Rosa e de Oswald de Andrade, o cineasta criou uma concepção particular de Brasil como sinônimo de possível: “tudo é Brasil” é igual a “tudo é possível”, o que me pareceu uma síntese perfeita do que somos, em três palavrinhas apenas. Desafiador, o diretor de “O Bandido da Luz Vermelha”, nunca quis se enquadrar nos gêneros, nos estilos, nos jeitos de filmar “tradicionais”. Talvez isso explique todo o cinema brasileiro.

Invejamos os argentinos. “O cinema argentino, esse que é bom”, dizemos, “o nosso é ridículo, patético”, sentimos vergonha, rimos de nós mesmos. É verdade, a Argentina possui um bom cinema, mas qual o cânone utilizado para compará-lo ao cinema brasileiro? Nosso cinema é inenquadrável. Em que gaveta colocar, por exemplo, um José Mojica Marins, o Zé do Caixão? Pode-se dizer que o cinema dele é “tosco”, “B”, “mal-filmado”, “mal-interpretado”, mas quem ousará negar que se trata de um gênio? Foi preciso que ele se transformasse lá fora em “Coffin Joe”, que viesse do exterior o reconhecimento, para que pudéssemos prestar atenção nele fora do personagem bizarro. “Olha lá, esse Zé do Caixão até que não é de todo ruim…”

Possuímos um complexo de vira-latas de celulóide, e sem razão. Está certo que os argentinos dominam a carpintaria, sabem fazer cinema da forma clássica, contam boas histórias. Mas nós, nossos cineastas são maravilhosamente loucos, pensadores à frente de seu tempo, fizeram um cinema que transpira Brasil, você goste dele ou não. É pujante, é visceral, é insano, e é impregnado de profundidades e tentativas de nos reconhecer como nação única. Como esquecer “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, ainda que se tenha visto apenas uma vez? A frase final até hoje ressoa na minha cabeça, mais de 20 anos depois de tê-lo visto num cineclube de diretório estudantil: “O povo é débil mental!”

E Fernanda Montenegro catando feijão em “Eles Não Usam Black-Tie”, de Leon Hirszman. E Macunaíma caindo do ventre da mãe no clássico de Joaquim Pedro de Andrade. E o ladrão boliviano de “Toda Nudez Será Castigada”, de Arnaldo Jabor. E mais recentemente “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho, que me fez sair aos prantos do cinema, ruminando memórias de infância. E o “Madame Satã”, de Karim Aïnouz. E Francisco Alves na trilha sonora de “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes. Ou os filmes “para chocar” do pernambucano Cláudio Assis. E tantos, tantos outros. Todos inesquecíveis.

Adoro o cinema argentino, sou fã. Só não vejo por que teríamos de nos sentir inferiorizados diante dele. São grandes realizadores? Sim. Mas nós temos inventividade, ousadia. Os filmes brasileiros mais autorais provocam, instigam o pensamento. Podem gerar raiva e desprezo, mas nunca apatia. Isso é precioso. No documentário, Mister Sganzerla diz sobre si mesmo uma frase que para mim define todo o nosso melhor cinema: “Sou e continuarei sendo um experimentador. Se não entendeu, problema seu”.

Fui assistir “Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz”, excelente documentário de Joel Pizzini sobre Rogério Sganzerla (1946-2004), um dos nossos gênios cinematográficos. Uai, mas temos gênios no cinema? Nosso cinema não é o mais chinfrim do planeta? Não dizia o grande jornalista Ivan Lessa, morto no último dia 8, que “o Brasil deveria esquecer o cinema”? “Somos ruins”, vaticinava Lessa. E ponto final.

Será mesmo? Depois de uma hora e meia ouvindo e conhecendo Sganzerla, cheguei à conclusão que o malfadado “complexo de vira-latas” que atinge a educação, a saúde, a ciência, a economia, a literatura, a formação e tudo quanto diz respeito ao Brasil e aos brasileiros, também vitima nosso cinema. Filme nacional? Argh, é o mesmo que uísque, uma porcaria, esqueça, não vale a pena sair de casa para ver este lixo. Mas o que tem de verdade nisso e o que tem de puro complexo de inferioridade?

Diante de mim, na tela, vi um homem com ideias fascinantes. Senti vontade de anotar tudo o que Sganzerla falava. “O povo brasileiro não pode de forma alguma abdicar da síntese de sua alma, que é a intuição”. “Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço”. “Quem não entendeu agora não vai entender nunca”. Fã de Orson Welles, Noel Rosa e de Oswald de Andrade, o cineasta criou uma concepção particular de Brasil como sinônimo de possível: “tudo é Brasil” é igual a “tudo é possível”, o que me pareceu uma síntese perfeita do que somos, em três palavrinhas apenas. Desafiador, o diretor de “O Bandido da Luz Vermelha”, nunca quis se enquadrar nos gêneros, nos estilos, nos jeitos de filmar “tradicionais”. Talvez isso explique todo o cinema brasileiro.

Invejamos os argentinos. “O cinema argentino, esse que é bom”, dizemos, “o nosso é ridículo, patético”, sentimos vergonha, rimos de nós mesmos. É verdade, a Argentina possui um bom cinema, mas qual o cânone utilizado para compará-lo ao cinema brasileiro? Nosso cinema é inenquadrável. Em que gaveta colocar, por exemplo, um José Mojica Marins, o Zé do Caixão? Pode-se dizer que o cinema dele é “tosco”, “B”, “mal-filmado”, “mal-interpretado”, mas quem ousará negar que se trata de um gênio? Foi preciso que ele se transformasse lá fora em “Coffin Joe”, que viesse do exterior o reconhecimento, para que pudéssemos prestar atenção nele fora do personagem bizarro. “Olha lá, esse Zé do Caixão até que não é de todo ruim…”

Possuímos um complexo de vira-latas de celulóide, e sem razão. Está certo que os argentinos dominam a carpintaria, sabem fazer cinema da forma clássica, contam boas histórias. Mas nós, nossos cineastas são maravilhosamente loucos, pensadores à frente de seu tempo, fizeram um cinema que transpira Brasil, você goste dele ou não. É pujante, é visceral, é insano, e é impregnado de profundidades e tentativas de nos reconhecer como nação única. Como esquecer “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, ainda que se tenha visto apenas uma vez? A frase final até hoje ressoa na minha cabeça, mais de 20 anos depois de tê-lo visto num cineclube de diretório estudantil: “O povo é débil mental!”

E Fernanda Montenegro catando feijão em “Eles Não Usam Black-Tie”, de Leon Hirszman. E Macunaíma caindo do ventre da mãe no clássico de Joaquim Pedro de Andrade. E o ladrão boliviano de “Toda Nudez Será Castigada”, de Arnaldo Jabor. E mais recentemente “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho, que me fez sair aos prantos do cinema, ruminando memórias de infância. E o “Madame Satã”, de Karim Aïnouz. E Francisco Alves na trilha sonora de “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes. Ou os filmes “para chocar” do pernambucano Cláudio Assis. E tantos, tantos outros. Todos inesquecíveis.

Adoro o cinema argentino, sou fã. Só não vejo por que teríamos de nos sentir inferiorizados diante dele. São grandes realizadores? Sim. Mas nós temos inventividade, ousadia. Os filmes brasileiros mais autorais provocam, instigam o pensamento. Podem gerar raiva e desprezo, mas nunca apatia. Isso é precioso. No documentário, Mister Sganzerla diz sobre si mesmo uma frase que para mim define todo o nosso melhor cinema: “Sou e continuarei sendo um experimentador. Se não entendeu, problema seu”.

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