Cultura
Os tentáculos das big techs
Para Marietje Schaake, pesquisadora de Stanford, as grandes empresas de tecnologia tomam decisões que, antes, só cabia aos Estados tomar


A holandesa Marietje Schaake, ex-membro do Parlamento Europeu, é diretora de política internacional no Centro de Ciberpolíticas da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e pesquisadora em política internacional no Instituto de Inteligência Artificial Centrada em Humanos, também em Stanford. Seu novo livro, lançado pela Princeton University Press, tem um título bem direto: The Tech Coup: How to Save Democracy from Silicon Valley (O Golpe Tecnológico: Como Salvar a Democracia do Vale do Silício).
The Observer: Em termos de poder e influência política, quais são as principais diferenças entre as big techs e as encarnações anteriores das grandes empresas?
Marietje Schaake: A diferença é a presença dessas empresas em tantos aspectos da vida das pessoas: no Estado, na economia, na geopolítica. Os monopolistas precedentes acumulavam muito capital e posições significativas, mas, geralmente, estavam em um setor, como petróleo ou automóveis. As atuais empresas de tecnologia são como polvos com tentáculos que se espalham em muitas direções. Elas têm muitos dados, informações de localização, pesquisa, comunicações, infraestrutura crítica e, agora, a IA, construída em cima de todo esse poder reunido.
TO: Peter Kyle, secretário de Tecnologia do Reino Unido, sugeriu recentemente que os governos precisam demonstrar um “senso de humildade” com as grandes empresas de tecnologia e tratá-las mais como Estados-Nações. O que você pensa disso?
MS: Penso que é um mal-entendido desconcertante sobre o papel de um líder. Sim, essas empresas tornaram-se incrivelmente poderosas e, como tal, entendo a comparação com o papel dos Estados, uma vez que elas tomam decisões antes de domínio exclusivo do Estado. Mas o papel de um governo progressista deve ser fortalecer a primazia da governança e supervisão democráticas, e não mostrar humildade. Há necessidade de autoconfiança por parte do governo democrático para garantir que essas empresas assumam seu papel adequado em um sistema baseado no Estado de Direito, e não que o dominem.
TO: Qual você acha que será o impacto da Presidência de Donald Trump?
MS: A eleição de Donald Trump muda tudo, especialmente porque os Estados Unidos são um poderoso centro geopolítico e tecnológico. Há muito dinheiro criptográfico e muito capital de risco apoiando Trump, que anunciou uma agenda de desregulamentaçã. E ele também elevou o status de Elon Musk. Por outro lado, Musk é crítico em relação ao risco existencial trazido por algumas dinâmicas da IA. Teremos de ver quanto tempo dura a lua de mel entre ele e Trump, e também como outras grandes empresas de tecnologia vão responder. Porque elas não ficarão contentes com Musk decidindo a política tecnológica. Acredito que tempos difíceis virão.
“Há muito dinheiro criptográfico e capital de risco apoiando Trump, que anunciou uma agenda de desregulamentação”
TO: Por que os políticos foram tão levianos diante da revolução tecnológica digital?
MS: As empresas mais poderosas que temos hoje estavam enraizadas nesse tipo de tendência progressista e libertária da contracultura da Califórnia, aquela narrativa romântica de dois caras de bermuda em um porão ou garagem, escrevendo códigos e desafiando os grandes poderes constituídos: empresas de mídia, filiais de hotéis, empresas de táxi, serviços financeiros, todos com reputações muito ruins. Certamente, havia espaço para disrupção, mas essa mentalidade de azarão era incrivelmente poderosa. Eles foram muito inteligentes ao enquadrar o que faziam como descentralização. Google e Facebook têm constantemente afirmado que qualquer medida regulatória prejudicaria a internet. Foi, então, uma combinação entre querer acreditar na promessa e não avaliar como interesses corporativos estavam vencendo o interesse público.
TO: Os políticos foram contidos por sua ignorância tecnológica?
MS: Sim, acho que eles estão intimidados. Mas também acho que acusar a atuação dos governos é algo que as empresas de tecnologia fazem de forma deliberada. É importante entender que a maneira como somos ensinados a pensar sobre tecnologia é moldada pelas próprias empresas. Vem também daí a narrativa de que os governos são desqualificados para lidar com tecnologia porque são burros, antiquados, ineficazes na prestação de serviços. A mensagem é: se eles nem conseguem processar os impostos a tempo, o que vão fazer com a IA? É uma caricatura do governo, e o governo não deve abraçá-la.
TO: Você fala em se recuperar a soberania. Você não acha que a maioria das pessoas nem sequer reconhece que parte da soberania foi perdida?
MS: Uma das minhas motivações para escrever este livro foi atingir leitores de notícias comuns, não especialistas em tecnologia. Explicar que esse é um problema que interessa a todos, é uma enorme empreitada. Estou curiosa para ver como o impacto do governo Trump provocará reações dos líderes europeus, mas também de outros ao redor do mundo que, simplesmente, pensam que não podemos aceitar a dependência das empresas tecnológicas dos EUA. Isso é algo indesejável. Basicamente, estamos enviando nosso dinheiro para o Vale do Silício sem ganhar nada em troca – a não ser mais dependência. Vai ser incrivelmente desafiador, mas não fazer nada, certamente, não vai melhorar a situação. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os tentáculos das big techs’
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