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Os sonhos de Sidarta Ribeiro

Em novo livro, o neurocientista defende os saberes ancestrais e faz um chamado à expansão da consciência

“Dinheiro demais é tóxico”, diz o pesquisador - Imagem: Elisa Elsie
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No início de Sonho ­Manifesto, Sidarta Ribeiro recupera o mito de Angulimala, um facínora, colecionador de dedos, que se regenera ao encontrar o Buda. “É sempre possível e desejável deixar de cometer maldades irreversíveis”, escreve o autor, homônimo do Buda. Seu sonho é que esse mito sirva de inspiração para os opressores.

Nascido em Brasília, em 1971, Sidarta é mestre em biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em comportamento animal pela Universidade ­Rockefeller e pós-doutor em neurofisiologia pela Universidade Duke. Mas, ao contrário do que fazem outros neurocientistas escritores – como os célebres Oliver Sacks e Karl Deisseroth –, ele, na nova obra, não se detém sobre o funcionamento do cérebro.

Seu propósito, nesse conjunto de escritos, é menos expor conhecimentos técnicos e mais fazer um chamado. Sim, um chamado para que, juntos, interrompamos a asfixia da Terra. “É um livro para meus filhos, meus netos e bisnetos. Desejo chamar atenção para a necessidade de expansão da consciência planetária”, diz.

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, escritor e palestrante, Sidarta tem uma agenda bastante apertada. Isso não significa, porém, dizer que viva assoberbado. “Tenho buscado praticar aquilo que faz bem. Eu e a Luiza (sua mulher) queremos viver em felicidade, harmonia e prazer. Então, temos de fazer escolhas”, responde, quando questionado sobre o exercício de dizer nãos. Em 20 minutos de conversa com CartaCapital, revista da qual é colunista, Sidarta expôs alguns dos sentidos desse seu Sonho Manifesto.

SONHO MANIFESTO. Sidarta Ribeiro. Companhia das Letras (200 págs., 44,90 reais).

CartaCapital: Seu livro, se não entendi mal, é quase sobre a fé – não numa religião específica, mas na humanidade. É preciso, depois dos insanos embates sobre a ­Covid-19, reconciliar religião e ciência?

Sidarta Ribeiro: Esse embate é um sintoma do nosso desastre político. No Brasil, a fé cristã foi sequestrada pelos seus contrários. Basta ver o que está acontecendo ao ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro (preso sob acusação de favorecer pastores na distribuição de verbas). Mas, na verdade, a ciência é neta da religião. A ciência é um tipo de religião, um tipo de conhecimento e uma forma de nos conectarmos uns aos outros. Que tipo de religião ela é? Uma religião que não acredita em verdade revelada, e sim em ideia revelada, para ser testada. É uma religião em transformação perene porque suas verdades são provisórias. É uma religião muito particular e eficaz – para o bem e para o mal. É por isso que digo que, para salvar a nossa espécie da degradação completa, a gente precisa aliar a ciência a saberes originais, de mestres que têm uma bússola moral mais sólida que a da ciência – que trabalha um pouco como uma biruta. Do mesmo jeito que tem gente fazendo ciência ambiental, tem gente fazendo bomba. Precisamos de mais saberes, como os saberes ameríndios, que têm também sua ciência.

CC: O senhor é um cientista que fala mais sobre saberes tradicionais do que sobre as últimas descobertas da neuro­ciência. O que mais o move neste momento?

SR: Todos temos personas, mas, o que a gente sabe ou deixa de saber, não se reduz à persona. A neurociência é só uma disciplina, e todas as disciplinas são uma criação humana. Realidade e natureza estão integradas e articuladas. Nos séculos XIX e XX, buscamos olhares específicos para tentar entender alguma coisa, mas o século XXI é o momento da síntese. Hoje, por meio da internet, temos como juntar os saberes. Se daqui a mil anos ainda houver espécie humana é porque a gente terá, agora, feito as coisas benfeitas. A fé é um instrumento ancestral de coesão dos grupos. Adoro a frase do ­Ailton Krenak: o futuro é ancestral. Muito do que temos a fazer é resgatar saberes e valores ancestrais.

CC: Você escreve que, se quisermos permanecer no planeta, os mais fortes precisarão cuidar dos mais fracos – e não os destruir. Ao mencionar que, na pandemia, dez bilionários dobraram ­suas riquezas materiais, enquanto a renda de 99% da população caiu, você escreve: “Faltam a eles visão, decisão, vigor ou amor”. O que é o vício em dinheiro e o que ele causa?

SR: É uma maneira de não lidar com a morte. Dinheiro demais é tóxico, porque a pessoa quer sempre mais. O livro aponta a dicotomia entre os sistemas da dopamina e da serotonina. A gente precisa de ambos, mas eles têm funcionamentos diferentes. No sistema da dopamina, que é o da recompensa, quanto mais se tem, mais se quer. O prazer de quem é viciado em compras termina, tipicamente, na compra. O dinheiro também faz muito mal quando não existe. Há 800 milhões de pessoas em insegurança alimentar em um planeta que produz muita comida e joga muita comida fora. Isso denota que muita gente está presa a um desejo por mais dinheiro que nunca será satisfeito. As pessoas que têm mais, seja capital financeiro, seja conhecimento, precisam dar-se conta da necessidade da partilha.

CC: Como este livro se conecta ao anterior, O Oráculo da Noite – A História e a Ciência do Sonho?

SR: Quando comecei a falar sobre o Oráculo, várias fichas sobre as consequências sociais daquilo que o livro mostrava começaram a cair para mim. O Sonho Manifesto tem a ver com tudo que falei, ouvi e li. É a manifestação de um chamado muito antigo, que é o chamado para a gente cuidar da gente, que remonta à origem da nossa espécie.

CC: Li, em O Globo, que 63% dos brasileiros declaram ter problemas de sono. Como o sono afeta a nossa capacidade de sonhar?

SR: Nos últimos cem anos, as pessoas passaram a dormir duas horas a menos. O sono está em extinção, e o sonho mais ainda. As pessoas não se lembram dos sonhos e, quando se lembram, não anotam, não compartilham e, quando compartilham, os outros acham chatos. Quem dorme mal tem problemas cognitivos e emocionais já no dia seguinte, e tem maior propensão para problemas cardiovasculares, diabetes e depressão. E já se sabe que a má qualidade de sono por anos seguidos aumenta a propensão para o Mal de Alzheimer. O sono restaura o corpo e a mente. A falta de sonho, por sua vez, leva a uma redução dos insights sobre si. Quem não sonha, tem maior dificuldade de fazer sua regulação emocional. O Sonho Manifesto defende a ideia de que vivemos um momento de enormes potencialidades, mas precisamos despertar para elas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os sonhos de Sidarta Ribeiro “

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