Cultura
Os neurônios e os sentimentos
Em Conexões, Karl Deisseroth vai da evolução da vespa ao autismo e da música à demência para investigar a natureza das emoções


A pandemia foi um cataclismo que define uma geração. Apesar de a Covid-19 ser uma doença que ataca os pulmões, ela piorou também a saúde mental e, como diz Karl Deisseroth, neurocientista, psiquiatra, bioengenheiro e agora escritor norte-americano, “o coronavírus afetou e modificou a todos nós”.
Durante o isolamento social, passado em sua casa, em Palo Alto, na Califórnia, Deisseroth cuidou dos quatro filhos pequenos, terminou o livro Conexões, recém-lançado no Brasil, e atendeu pacientes psiquiátricos pelo Zoom.
Isso tudo foi encaixado em seu trabalho diário, que é usar minúsculos cabos de fibra óptica para disparar lasers no cérebro de camundongos que ele infectou com células de algas sensíveis à luz. Depois, ele observa o que acontece, milissegundo a milissegundo, conforme são ligados ou desligados neurônios individuais.
Essa é a metodologia básica da optogenética, técnica pioneira desenvolvida por Deisseroth em 2005 e reconhecida como um dos grandes avanços científicos do século XXI. Em essência, ele encontrou um modo de ativar ou desativar células cerebrais individuais com incrível precisão. Com isso, causou uma revolução na neurociência.
CONEXÕES – UMA HISTÓRIA DAS EMOÇÕES HUMANAS. Karl Deisseroth. Tradução: Paulo Geiger Objetiva (248 págs., 89,90 reais)
A optogenética é hoje um campo próprio. Suas técnicas e princípios são usados em centenas de laboratórios em todo o mundo para avançar na compreensão dos circuitos cerebrais e das consequências de condições como esquizofrenia, autismo e demência.
Isso é feito, principalmente, a partir de experimentos em animais – literalmente, aumentando ou reduzindo os circuitos que controlam a agressão, por exemplo. Os princípios optogenéticos também já foram aplicados na retina humana para restaurar parcialmente a visão de uma pessoa cega.
Deisseroth tem outro grande feito em seu currículo: os cérebros transparentes, que consistem em imagens cerebrais extraordinariamente detalhadas.
Com cabelo desgrenhado e jeito desapressado, Deisseroth mais parece um baixista de banda de rock do que um cientista importante. E, de acordo com sua própria versão, toda a sua pesquisa em alta tecnologia surgiu da ambição de infância de ser um poeta.
“Sempre me intrigou a forma como as palavras despertam emoções e podem nos elevar e nos derrubar. Elas atuam como símbolos poderosos”, diz. “Um caminho para entender como esses símbolos se transformam em sentimentos é ver como o cérebro funciona. Foi por isso que me interessei por neurociência.”
Mas ele chegou à neurociência por meio da psiquiatria. Em geral, os dois campos são vistos como distintos – cérebro versus mente –, mas os insights obtidos em consultas com pacientes foram as sementes de muitos experimentos de Deisseroth.
Conexões é Deisseroth voltando ao seu “amor original e maior”: escrever. É um livro revelador. Temperado com citações de Jorge Luis Borges e Toni Morrison, ele salta da evolução da vespa para o autismo, das origens da pelagem dos mamíferos à automutilação em pacientes com transtorno de personalidade borderline, da música à demência.
Às vezes lembra os casos de Oliver Sacks, às vezes a extensão do Sapiens de Yuval Noah Harari. Mas Deisseroth diz que seu modelo mais próximo é A Tabela
“Sempre me intrigou a forma como as palavras despertam emoções e podem nos elevar e nos derrubar. Elas atuam como símbolos poderosos”
Periódica, do químico-poeta Primo Levi. Ele escreve com um amor evidente pelas palavras, mas também com uma linha lúcida de investigação científica. O que são os sentimentos? Como eles atuam? Por que os temos? Como surgem os novos sentimentos? E por que eles são tão frequentemente mal adaptados às nossas circunstâncias?
“Os sentimentos são respostas às informações do mundo – mas, como todos sabemos, seguem a própria trajetória”, diz Deisseroth. “Eles se combinam e desaparecem com o tempo. Às vezes, nem temos consciência deles.”
Embora ainda estejamos longe de uma compreensão da natureza física dos sentimentos, a optogenética começa a nos dar uma ideia de como e por que eles surgem. “Podemos não só registrar a atividade de dezenas de milhares de neurônios enquanto os processos que correspondem aos sentimentos estão acontecendo, como podemos aumentar e diminuir diretamente a representação desses sentimentos com grande precisão. Podemos tornar um animal mais ou menos ansioso ou agressivo, ou maternal, ou faminto, ou sedento.”
Há muitos momentos em que as histórias de casos de Deisseroth ecoam os tempos estranhos que estamos vivendo. Uma das histórias diz respeito a um americano rico e bem ajustado cuja aposentadoria aconteceu na época do 11 de Setembro. Esse homem não estava nem perto de Nova York quando ocorreu o ataque e não conhecia ninguém envolvido, mas, duas semanas depois, de férias na Grécia, começou a exibir “mania clássica”.
Estava extraordinariamente alegre, reduziu drasticamente as horas de sono e tinha maior libido. Quando voltou para casa, ofereceu-se como voluntário na Marinha dos Estados Unidos e começou a treinar para a guerra, subindo em árvores, praticando pontaria, lendo estratégia militar e insistindo para a família, perplexa, que estava melhor do que nunca.
Para Deisseroth, o caso foi uma espécie de parábola. “Por que existe essa suscetibilidade à mania? Existe um valor nela – se não para a pessoa, então para a comunidade ou para a espécie? É algo que foi mais valioso em outro momento na longa marcha da evolução?” Ele especula que o estado maníaco é um circuito no cérebro esperando para ser acionado. E talvez esses estados tenham ajudado os humanos a lidar com guerra, fome, emergência climática ou pandemias no passado.
O que consideramos doença mental pode ser uma adaptação evolutiva – ou uma tentativa de adaptação – que ajudou as comunidades do passado a sobreviver. “O estado alterado tem sido historicamente importante. Mesmo mal adaptado ao indivíduo, pode ser transformador para a comunidade”, diz.
Em outro capítulo, Deisseroth compara dois pacientes com “estados cerebrais sociais e não sociais” extremos. Aynur era uma mulher aberta e falante que começou a ter pensamentos suicidas quando soube, enquanto morava na Europa, que seu marido tinha sido enterrado em um campo de concentração chinês. Como uma pessoa muito extrovertida, a perda de seus profundos laços sociais a havia destruído.
A optogenética, técnica desenvolvida por Deisseroth em camundongos, ativa células cerebrais – Imagem: Huber Daniel/Universidade de Genebra
Enquanto isso, Charles, que estava no espectro autista, recuou do contato humano: ele sofria ataques de pânico em situações sociais e não conseguia olhar nos olhos de ninguém. Deisseroth foi capaz de tratar a ansiedade e os ataques de pânico dele, mas o problema do contato visual permaneceu inalterado. No entanto, conversando com Charles, ele conseguiu chegar à “verdadeira essência” do problema. Não era o contato visual que o deixava ansioso. Era o excesso de informação social transmitida através do contato visual. Charles achava isso esmagador.
“Ouvi-lo dizer isso foi transformador para mim. Pudemos levar essas ideias para o laboratório e estudar e até quantificar em bits por segundo como certas mudanças que acontecem no autismo podem afetar o manuseio de informações no cérebro dos mamíferos”, diz.
A tecnologia de computadores, que reduz nossas interações humanas multissensoriais e multicamadas às vezes a um único bit de informação – gostar ou não gostar? –, é uma sombra pobre do nosso contato social habitual. “Uma das razões pelas quais as reuniões no aplicativo Zoom podem ser tão exaustivas é que temos de trabalhar muito mais para criar nosso modelo da outra pessoa”, diz Deisseroth.
No momento, Deisseroth vem tentando criar uma teoria unificada do eu. O que realmente o entusiasma são os “grandes princípios” do cérebro. “Qualquer coisa pode ter partes. A verdadeira magia é como as propriedades do sistema surgem das partes”, diz. “É possível que não alcancemos um entendimento profundo durante décadas. Mas temos de levá-lo adiante até onde pudermos.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os neurônios e os sentimentos”
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.