Cultura

Os latinos na dianteira da seleção brasileira, ainda desequilibrada

Ineditismo dessas produções sempre confere maior relevância e interesse, mas não necessariamente isso se reflete na qualidade

Os latinos na dianteira da seleção brasileira, ainda desequilibrada
Os latinos na dianteira da seleção brasileira, ainda desequilibrada
Cena de 'O Último Cine Drive In'
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Desde o início do festival um rumor nos bastidores dava conta de que a seleção latina estaria melhor do que a brasileira. Isso nem só pelo quesito qualidade, mas pelo fato de que alguns dos títulos nacionais escolhidos já haviam passado por prova anterior em outros eventos, inclusive com direito a prêmios. É verdade que o ineditismo dos latinos por aqui sempre confere maior relevância e interesse, mas não necessariamente isso se reflete na qualidade. 

Foi-se metade da competição e pode-se dizer que há um equilíbrio no que toca a esse aspecto. Se a seleção da casa começou bem com o filme de Anna Muylaert, não se manteve o pique com os concorrentes seguintes, Introdução à Música de Sangue, que comentei em coluna anterior, O Fim e os Meios e O Último Cine Drive-in, voltando a elevar o nível com Ausência, que sabemos ótimo desde a Mostra de São Paulo do ano passado. Há ainda o problemático O Outro Lado do Paraíso, exibido ontem. 

Quanto aos latinos, o painel se equacionou numa média alta ou pelo menos instigante com En la Estancia, Zanahoria e Ella, deixando a desejar com Venecia e Presos. Mas festivais não são corridas de adestramento e os filmes merecem sempre ser relativizados fora deste contexto, o que faço a seguir, separadamente, conforme a correria por aqui permite:

O Fim e os Meios – Uma coisa é certa: Murilo Salles é um realizador que busca, e muitas vezes acerta, sintonizar seu tempo. Antecipou a violência que substitui a infância em Como Nascem os Anjos, as crises e frustrações do jovem a caminho da maturidade em Seja o que Deus Quiser e Nome Próprio.

Agora é a vez do depauperado painel político atual, ou o que sobra dele, o que envolve corrupção e valores como honestidade e ética. O filme competiu no Aruanda em dezembro último, a mostra de João Pessoa, onde fui jurado da Abraccine.

A reflexão proposta, porém, não é apenas sobre este estado de coisas mas como a sociedade está paralisada e autocentrada nesta discussão. O casal de personagens, uma jornalista e um publicitário, são atirados no centro da arena quando se mudam para Brasília, levados por um emprego irrecusável para ele.

A mulher também quer seu quinhão, atraída por atuar no centro do poder. Aos poucos consomem seu afeto, interesse e por fim o casamento no desgaste das ambições e pressões. A teia de interesses envolve, claro, muito dinheiro, e certo esquematismo então começa a vigorar na história, com os desdobramentos esperados. Um diretor maduro, de posições esclarecidas e politizadas como Salles, poderia ter desviado com mais afinco do contraponto simplista do bem e do mal. Ainda sim, um filme necessário para dialogar com o que está aí.  

O Último Cine Drive-in – Já havia visto o filme de Iberê Carvalho numa situação tão peculiar como ainda é o drive-in em funcionamento em Brasília, cenário inspirador para a trama. Na tela montada na praia de São Miguel do Gostoso, pés na areia, mergulhei no impacto inicial com o filho (Breno Nina) que briga para poder entrar no hospital e ver a mãe vítima de câncer. A doença o reaproximará do pai distante (Othon Bastos), dono de um cine drive-in decadente, onde trabalha também uma jovem dedicada.

Este núcleo, muito melhor estruturado, andará em paralelo com as cenas de reencontro do trio familiar e o desejo do filho em proporcionar um retorno da matriarca ao empreendimento. Carvalho assume a vontade de tratar a parte mais dramática no registro do melodrama, o que me parece tomar conta e enfraquecer todo o filme. Mas é sensível na homenagem a arte, dividida em igual equilíbrio pelo bom elenco.

Ausência – O diretor Chico Teixeira não escondeu do público de Gramado o drama pessoal que atravessa no momento. No vídeo que enviou a organização exibido antes de seu filme, ele surge muito otimista e bem-humorado, seu traço reconhecido de personalidade, justificando não ter vindo em função de tratamento médico. Tirou seu chapéu e mostrou estar sem cabelos, em razão da radioterapia. Foi um toque extra de emoção a um filme que busca conte-la para valer-se apenas de uma história sensível, que venceu a Mostra Aruanda no ano passado.

Em torno de Serginho, um garoto de família desestruturada, o pai ausente e a mãe dependente do álcool pouco ou nada dedicada a cria-lo, está o cotidiano penoso na feira, aliviado por amigos e uma garota com quem flerta. Mas sobretudo há um professor (Irandhir Santos), a quem ele toma como figura paterna.

Chico é mestre em retratar a classe média, em seu degrau talvez mais rente ao chão, como fez em A Casa de Alice. Não por acaso se vale de instituições populares como a feira urbana e o circo para dar dimensão mais representativa dos bairros distantes. O elenco, o estreante Matheus Fagundes como o garoto, Gilda Nomacce, atriz que muda o registro por vezes over no papel da mãe, só soma qualidade a um dos melhores filmes do ano.       

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