Cultura

Os jovens não passam roupa

Será que ainda existem mulheres como a Maria Passadeira?

A engomadeira, tela de 1873 do pintor francês Edgard Degas
Apoie Siga-nos no

É muito vaga a minha lembrança do ferro a brasa. A única que me vem à memória, é lá da Fazenda do Sertão, interior de Minas, eu menino ainda, espiando da janela uma senhora idosa passando roupa com o tal ferro. Éramos proibidos de entrar ali porque saiamos tossindo muito e defumados.

Era uma senhora negra, franzina, um lenço branco na cabeça, que enfrentava com todo vigor uma pilha de roupas pra passar, que ela costumava deixar dentro de um enorme cesto de vime.

Na Fazenda do Sertão não havia eletricidade, vivíamos de lamparina e a solução para passar roupa, era aquele pesado ferro a brasa, uma verdadeira maria fumaça.  

A senhora soprava e colocava brasa toda vez que sentia que a roupa não estava ficando lisinha e impecável. Eram uns lençóis brancos, umas fronhas bordadas e muita roupa encardida de crianças que viviam naquela poeira danada, barro quando chovia. 

Muitos anos depois, vi alguns ferros a brasa no interior de Minas, decorando casas, com arranjos de flores dentro, ou segurando a porta para não fechar. 

Quando chegou o ferro elétrico, o temor da minha mãe veio junto. Era uma época em que os aparelhos eletrodomésticos davam muito choque e minha mãe só encostava no ferro de passar com uma sandália de borracha nos pés.

A minha irmã mais velha logo ficou apaixonada pelo tal ferro elétrico, tão apaixonada que o meu pai deu a ela de presente de Natal, um ferrinho de passar roupa da Estrela. Era um ferrinho de verdade, com fio e tomada, que ligava e esquentava. Parecia que ninguém tinha medo do perigo.  

 A mamadeira era de vidro, andávamos em muros com cacos, fazíamos guerra de mamona, jogávamos bola na rua e andávamos armados com um revólver de espoleta na cintura, também da Estrela. A gente matava e nossos amigos morriam de mentira.

Voltando ao ferrinho da Estrela, um dia, minha irmã saiu do banho e foi passar a roupinha da boneca. Descalça e com os cabelos molhados, ela acabou levando um choque violento e ficou presa a ele, gritando por socorro. Foi depois disso que minha mãe escondeu o ferrinho no alto do armário, pra ninguém nunca mais pegar.

Leia também: 
Não chore mais
Se o caso é chorar

Estou contando essas histórias, mas a que eu quero mesmo contar é que percebi ultimamente, que essa juventude de hoje não passa mais roupa. Ninguém das amigas ou amigos das minhas filhas, nem mesmo elas, passam roupa. Acham que é inútil, uma bobagem, gastar tempo e energia passando roupa.

Eu não me acostumo com roupa amassada. Outro dia liguei pros meus irmãos e perguntei se eles ainda passavam roupa. Sim, todos continuam saindo sempre na estica. Alguns gostam de passar, outros não. Mas todos fazem questão de sair com a roupa passada.

Foi então que minha irmã lembrou de Maria Passadeira que, confesso, havia sumido da minha memória há décadas. Ela foi reativando à medida que minha irmã ia abrindo seu baú de memórias.  

Ninguém sabia o sobrenome da Maria. Era Maria Passadeira e pronto. Uma vez por semana, ela ia na nossa casa pra passar roupa. Chegava, tomava um cafezinho ralo com um pedaço de pão com manteiga, encurtava a conversa e dizia: “O papo está ótimo, mas eu tenho um mundo de roupa pra passar”.

E tinha mesmo. Éramos cinco filhos e muita roupa, muitos lençóis, muito uniforme de futebol, muita camisa social do meu pai. Mas a Maria Passadeira nunca reclamava. No final do dia, ela ia de quarto em quarto e colocava, em cima da cama de cada um, a roupa impecavelmente passada.

Maria Passadeira não sabia cozinhar, não gostava de arrumar a casa, gostava só de passar roupa. E passava bem, inclusive engomando aquelas saias plissadas das minhas irmãs, uniforme do Colégio Sion.

Não sei se ainda existem passadeiras como Maria Passadeira, que vão na casa das pessoas exclusivamente para passar roupa. Talvez tenham desaparecido juntamente com as costureiras à domicilio, com o Simca Chambord, com a Mirinda Morango, com os maiôs Catalina e com as estampas do sabonete Eucalol. Enfim, tudo passa.  

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.