Cultura
Os horrores de um continente
Em seu romance de estreia, a colombiana Vanessa Londoño combina poesia e violência para falar sobre a realidade latino-americana


As menos de cem páginas de Cerco Animal podem, em um primeiro momento, não dar a dimensão precisa do soco que é o livro. É que a linguagem poética da prosa de Vanessa Londoño, autora nascida em Bogotá, escamoteia, ao olhar inicial, a profundidade de uma história de dor e atrocidades.
As impressões iniciais dissipam-se conforme a trama avança. Corpos mutilados, episódios de violência gerados pelo patriarcado e a busca de uma maneira de narrar que dê conta disso tudo se combinam e, ora, se digladiam. Como contar com precisão os horrores físicos, emocionais e espirituais que as personagens enfrentam?
“Era claro que minha mãe estava me negociando, como havia feito com os móveis que haviam desocupado a casa”, escreve uma narradora. “Sua mãe deu à luz uma criança que ela afogou com a minha ajuda na piscina da casa. Haviam me impressionado seus órgãos saudáveis e modestos e o rubor avermelhado de suas bochechas, que foram se apagando no lento movimento de sua cabeça submersa na água”, diz outro.
Ou ainda: “Mamãe era Fernanda Huanci. A indígena que amarraram a um totumo por dias seguidos e que colocaram para carregar pedras ajoelhada sobre sementes de algodão”.
Essa linguagem dura e de evocação visual marca Cerco Animal. O livro entrelaça quatro narrativas em primeira pessoa, que se complementam e se contradizem. Trata-se, nesse sentido, de um livro labiríntico, que tira o centro de quem o lê e cria propositadas confusões.
CERCO ANIMAL.Vanessa Londoño. Tradução: René Duarte. (Editora Peabiru, 98 págs. 44 reais)
O cenário é o vilarejo de Hukuméiji, no norte da Colômbia, próximo ao mar do Caribe, um lugar úmido e, ao mesmo tempo, seco, que começa num rio e termina nas montanhas. Essa contradição, quase uma impossibilidade de existência, é também o que marca a trama e as diversas vozes do livro – tantas que, por vezes, fazem o leitor se perder.
Ler Cerco Animal é, também, um exercício de memória, como definiu a autora em entrevista ao El País. Ela diz que, para não nos esquecermos dos horrores que sempre afligiram a América Latina, é preciso sempre lembrar.
Ao mesmo tempo que escancara a violência encrustada na história latino-americana, a autora evoca, por meio de descrições precisas, a força da natureza em seu país. A marcante estreia de Londoño é o primeiro lançamento de mais uma pequena editora que surge no Brasil, a Peabiru, que nasce com o propósito de se especializar em literatura latino-americana. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1207 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os horrores de um continente”
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