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Os griots brasileiros

Os cruéis efeitos da pandemia e do governo Bolsonaro sobre as periferias devolvem à cultura hip-hop a ferocidade

Em Sobre Viver, Criolo, conhecida figura das rinhas de MC’s da Zona Sul paulistana, homenageia a irmã morta por Covid-19 e mira em Bolsonaro - Imagem: Helder Fruteira
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Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo, passou um bom tempo sem compor rap. Figura histórica das rinhas de MC’s da Zona Sul de São Paulo e autor dos consagrados Nó na Orelha (2011) e Convoque Seu Buda (2014), ele confessa que até era visitado por ideias e sentimentos. Mas nada se convertia em versos. “Sentia que não estavam à altura do rap. Passei por três anos de espaçamento”, diz, em entrevista a CartaCapital.

As mazelas sociais agravadas pelo governo Bolsonaro e pela pandemia puseram fim ao período de pouca inspiração. No fim de 2020, Criolo reuniu-se com a dupla de produtores Zé Gonzalez e André Laudz, do Tropkillaz, para dar início a um novo processo de criação.

O trio lançou dois singles, entre eles ­Cleane, homenagem à irmã mais nova do rapper, morta em junho do ano passado de Covid-19. Fellini, outra canção da nova safra, saiu em janeiro de 2021, com produção de Neguim e Deekapz. Fortalecido, Criolo resolveu, depois disso, chamar os também habituais colaboradores Daniel ­Ganjaman e Marcelo Cabral para trabalhar em novas composições, além dos Tropkillaz.

O resultado do encontro é Sobre Viver, quinto álbum de sua discografia e o terceiro dedicado à cultura hip-hop. Mais que uma compilação de boas canções, o disco, que chegou ao streaming este mês, chama atenção para o descaso ao qual as periferias das grandes cidades estão relegadas.

Não por acaso, o álbum, inicialmente, era para se chamar Diário do Kaos, título da faixa que fala da dura realidade da periferia e professa a cura pelo amor. “É o que se gera na barriga quando o alimento é o caos: desgraça, fome e medo de não ter o amanhã. Gravei essa música chorando”, diz.

O sentimento do artista em relação ao governo federal está explicitado em Sétimo Templário: “A morte vem de ciranda, velho, mulher e criança/ De uma sala secreta um olho que sangra a lança/ Um presidente que diz plau depois pergunta/ Isso é matança?”

O discurso da ostentação e da superação, marca do rap alguns anos atrás, não tem lugar em meio ao caos

Erykah Badu, cantora americana que transita tanto no universo da soul music quanto do rap, defende a teoria de que os rappers são descendentes dos griots.

Os griots são nobres de origem africana que se utilizam da música e dos versos para contar a história de seus povos – no continente, a tradição oral predomina sobre a escrita. Mory Kanté, da Guiné, Toumani Diabaté, do Mali, e Youssou N’Dour, do Senegal, são exemplos de griots que flertaram com o universo pop e chegaram às paradas de sucesso.

A cultura hip-hop, formada pela tríade música/dança/grafite, foi usada inicialmente nos Estados Unidos como veí­culo de informação, denúncia e exaltação da negritude. Com o passar do tempo – e a ascensão econômica dos rappers –, ela passou a adotar também um discurso de ostentação e superação.

O rap chegou ao Brasil na segunda metade dos anos 1980. A dupla Thaíde e DJ Hum e o quarteto Racionais MC’s, todos de São Paulo, estão entre os principais cronistas desse período inicial, que atingiu a popularidade na década seguinte. Com a estabilidade econômica do início dos anos 2000, os protestos, ainda que contundentes, abriram espaço para letras românticas. O gênero também perdeu um pouco de terreno para o funk ostentação – que, como o próprio nome indica, saudava os ganhos financeiros da periferia.

A derrocada econômica dos últimos anos fez, porém, com que as letras combativas se tornassem novamente urgentes. A taxa de desemprego, no primeiro trimestre deste ano, rondou os 11,1%. Entre 2021 e 2022, a fatia de domicílios brasileiros que integra as classes D e E aumentou de 48,7% para 51%, segundo a consultoria Tendências.

Porcos recolhendo propina/ Desses que votam em quem tenta faturar com vacina. Rashid – Imagem: Kleber Oliveira

Um estudo feito pelo LabCidade, ligado à Universidade de São Paulo, mostra que os bairros periféricos tiveram até três vezes mais mortes por Covid-19 a cada 10 mil habitantes do que os distritos do Centro. Neste cenário desolador, o rap parece ter renovado seu ímpeto de protesto e indignação. Criolo foi um dos que encontraram, na tragédia, motivo para criar de novo. Mas está longe de ter sido o único.

“O rap será imprescindível para a compreensão desse movimento histórico de 2021 e 2022”, diz Rashid, que, no recém-lançado single Pílula Vermelha, Pílula Azul fala em Porcos recolhendo propina/ Desses que votam em quem tenta faturar com vacina. “A pandemia nos colocou para pensar sobre qual o nosso papel no meio disso tudo”, afirma.

Emicida, companheiro de geração de Rashid, usou, na canção Amarelo, os versos eternizados por Belchior em ­Sujeito de Sorte: Ano passado, eu morri/Mas neste ano eu não morro. Os cariocas ­LEALL e Orochi e o mineiro Djonga têm apresentado letras contundentes sobre a situação da periferia.

Sou a nova variante do vírus que eles quiseram extinguir da Terra/ Mas sempre que uma bala pega/ Nós volta mais forte, ou seja/ Até quando cês acerta, cês erra, canta Djonga em A Pior Música do Ano Parte 2, cujo bordão “fogo nos racistas” é entoado pelo público em seus shows.

O paulista Edgar, por sua vez, mira de forma direta os apoiadores de Bolsonaro em Boi, Bíblia e Bala, saída há pouco tempo do forno: Agrupe o seu gado/ Usando o livro sagrado. O veterano MV Bill também voltou a ser mais veemente: Planejando chacina/ Chapados de cloroquina, acusa, em Bocejo.

Sou a nova variante do vírus que eles quiseram extinguir da Terra/ Mas sempre que uma bala pega/ Nós volta mais forte. Djonga – Imagem: Daniel Assis

O potente Sobre Viver, de Criolo, é, nesse sentido, um álbum-sintoma. Mas, embora carregue nas tintas do protesto, ele passeia por sons que lembram a MPB dos anos 1970 – nesse ponto, é de se destacar a participação de Milton ­Nascimento em Me Corte na Boca do Céu, a Morte Não Tem Perdão – e por ritmos africanos.

Nas letras das canções, e também na entrevista, Criolo faz questão de defender a educação e o amor como armas fundamentais para a periferia sair do caos. “Ninguém quer ir na causa: professor, saúde, educação e moradia”, diz.

Em Pequenina, uma das mais bonitas faixas do álbum, ele, não por acaso, faz referência à mãe e à irmã. Eu vou ganhar dinheiro, mãe/ Porque é só assim que eles respeitam a gente, entoa a cantora Liniker, em dueto com o rapper. Mas pensar assim, Criolo, não é vitória do sistema, tio?/ Da onde eu vim, fim sempre é vitória do sistema. Cê tá em Nárnia, criança?, responde ele.

Quando Criolo faz uso do rap para demonstrar descontentamento e angústia – ainda que intercalados por versos de esperança –, ele devolve o gênero ao seu lugar de origem. O rap foi definido, certa vez, como a “CNN do povo preto”, ou seja, sua principal fonte de informação e cultura.

Outrora arautos da periferia e cronistas do gueto, os versejadores ­atuais ultrapassaram os limites ­geográficos e ocupam os mesmos salões dos ­principais nomes da música ­brasileira. ­Milton ­Nascimento é parceiro de ­Criolo e ­Djonga participa de Era de ­Aquarius, canção do mais recente álbum de ­Martinho da ­Vila. Griots da nova era, os ­rappers brasileiros vêm registrando, ­especialmente para o público jovem, a fissura social e o caos do País. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os griots brasileiros”

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