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Os futuros possíveis

Close e Alcarràs olham para a infância e a adolescência em um mundo no qual a esperança se tornou anacrônica

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Laureados. Close (à esq.) foi premiado em Cannes e concorre ao Oscar. Alcarràs (acima) levou o Urso de Ouro em Berlim – Imagem: Palace Films e A24
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O que os filmes atuais veem quando olham para a infância? Que mundo se revela por meio da visão das crianças que habitam os filmes adultos? Duas estreias em salas e no streaming chamam atenção para o papel que esses pequenos personagens desempenham no cinema contemporâneo.

Close (em cartaz nos cinemas desde a quinta-feira 2), segundo longa-metragem do belga Lukas Dhont, capta a crise da passagem entre a infância e a adolescência por meio da relação visceral entre dois garotos.

Alcarràs (disponível na Mubi), segundo longa-metragem da espanhola Carla ­Simón, também tematiza a crise, neste caso vivenciada por uma família de camponeses cuja subsistência é ameaçada pela chegada do progresso. Em meio a idosos, adultos e jovens, a perspectiva infantil mira a desordem sem conseguir ver o horizonte ou algum lugar para onde escapar.

A produção belga disputa o Oscar de melhor filme internacional na 95ª cerimônia de entrega do prêmio hollywoodiano neste domingo 12. Seu percurso reluzente teve início em maio do ano passado, quando o jovem diretor de 31 anos conquistou o Grande Prêmio no Festival de Cannes.

Alcarràs foi, por sua vez, o título escolhido pela Espanha para concorrer a uma vaga na apertada competição ao Oscar de filme internacional. Embora não tenha chegado lá, o filme de Simón conta com um não menos reluzente Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim de 2022.

Na contramão da ideia ainda corrente de que grandes festivais e prêmios reconhecem produções com excesso de recursos e dramas ruidosos interpretados por estrelas, Close e Alcarràs são filmes modestos. Por isso conseguem evidenciar o que parece irrelevante ou o que fica escondido nas entranhas do espetáculo.

Bastante modestos, e distanciados da ideia de espetáculo, os dois filmes capturam os momentos nos quais o idílio é invadido por uma realidade áspera

A primeira cena do título belga sugere isso na forma de intimidade e cumplicidade. Léo e Rémi ocupam um espaço que é só deles. O lado de fora é pressentido como uma ameaça. Eles tentam, juntos, ocultar-se de algo não mostrado.
Em oposição a esta imagem claustrofóbica surgem na sequência cenas de movimentos amplos e abertos. Os garotos correndo pelo campo onde a família de Léo cultiva flores são acompanhados por uma câmera solta. No caminho da escola, ambos pedalam suas bikes com a leveza de seus corpos ainda infantis e já adolescentes.

Ao mesmo tempo, a direção de Lukas Dhont revela a intensidade da conexão deles com cenas em que os toques e os olhares são mais eloquentes do que palavras. A contribuição da dupla de protagonistas, Eden Dambrine (Léo) e ­Gustav De Waele (Rémi), aprofunda a empatia que esse tipo de drama exige e impede que a trama se dilua em dramalhão.

A abertura idílica só dura até a entrada dos garotos no ambiente escolar. Ali, a intimidade fica exposta à coletividade, a cumplicidade sofre acusações e o equilíbrio se rompe.

O drama duríssimo narrado em ­Close oferece ao público chorão mais de uma cena para se desidratar. Mas tudo é contido. E talvez por isso toque tanto. Os jovens personagens expressam sua dor de modo distorcido ou deixam-na represada.

A cena de abertura de Alcarràs é, sintomaticamente, próxima à de Close. Nela, vemos três crianças brincando no interior de um carro abandonado. Aqui também, um ruído que vem de fora anuncia a desordem.

A pequena Iris e os primos Pau e ­Pere presenciam a chegada de um trator. A máquina com porte de monstro introduz a mudança, o fim do ciclo pastoral em que a família vive há décadas, cuidando da plantação de pêssegos que garante, mal ou bem, a subsistência.

Carla Simón reafirma sua sensibilidade para filmar a família como uma placa tectônica. Tal como em Verão 1993 (2007), seus personagens aqui são pontos nos quais os abalos são sentidos em intensidades diferentes e únicas.
O patriarca Rogelio acumula o peso das dificuldades da vida rural sem abandonar as alegrias de sua relação saborosa com a natureza. Para o temperamento corpulento de Quimet, pai das crianças e jovens, a mudança só é vista como destruição.

Sua esposa, Dolors, cria alternativas com seu talento para a quiropraxia, enquanto os jovens Roger e Mariona oscilam entre a energia liberadora e as funções predefinidas na economia doméstica e social. Já Iris, como criança que é, percorre esses diferentes estratos geracionais desafiando padrões e despreocupada de ter tarefas.
O fim de um lugar, representado pela destruição de um modelo econômico agrário e, com ele, da ideia de cultivo, equivale, para Iris e os primos pequenos, a perder os brinquedos favoritos. O acontecimento principal é antecedido por uma série de prenúncios.

Os primeiros a desaparecer são os africanos anônimos. Em seguida, os coe­lhos que invadem a plantação para devorar pêssegos são furiosamente caçados. O pequeno pé de maconha que alguém tenta cultivar não demora a ser arrancado e queimado.

Alcarràs registra, com olhar disfarçadamente doce, o apagamento de formas de vida. O filme de Carla Simón não é, porém, conservador nem anacrônico em sua nostalgia. Se a transformação da natureza impõe o modelo de terra arrasada, ­Alcarràs pergunta: onde e do que vamos viver? •

Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os futuros possíveis’

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