Cultura
Os fragmentos de uma tramoia
Os seis episódios da série documental ‘A Trama’ apresentam uma contranarrativa à operação Lava Jato


O Brasil vem sofrendo, na última década, uma crise que não é só política, ética e estética. É também semântica, como demonstra o uso hiperbólico da palavra “narrativa” para significar que não há fatos, apenas versões.
A série A Trama, disponível no streaming desde 1º de julho, retoma a sucessão dos acontecimentos para criar, como avisa a cartela de abertura, “uma reconstituição histórica independente, que estuda a participação do Judiciário, da mídia e das redes sociais nos processos políticos do Brasil entre 2016 e 2019”.
“Narrativa” virou um termo, tal como “arrogante”, usado para desqualificar um discurso oponente. A Trama devolve a palavra ao elementar e reabilita seu significado primordial.
Sua “narrativa” recupera o sentido de relato que unifica, lineariza num fio os fragmentos de uma história. Assim, pode transmitir o que ficou perdido ou foi deliberadamente ocultado.
Os diretores Otávio Antunes e Carlinhos Andrade adotam dois recursos básicos da linguagem do documentário, dispensando invencionices.
A Trama alinhava cronologicamente imagens jornalísticas, vídeos extraídos de redes sociais e fotografias, registros nada raros da sucessão de fatos marcantes desde o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 à libertação de Lula, em 2019.
O tsunami rememorativo de fatos e sobressaltos é intercalado por depoimentos de protagonistas e de pesquisadores e especialistas. A escolha proporciona releituras e análises de uma perspectiva mais distanciada, menos acalorada.
Os realizadores adotam uma clara posição política, tanto na ordenação dos materiais de arquivos quanto na seleção de vozes. Assumem, portanto, um ponto de vista narrativo.
Esta astúcia simples permite mostrar uma história articulada nos intestinos do poder, arrancar da toca e exibir a intencionalidade de seus autores, as manipulações fora do alcance público.
A passagem de Sergio Moro do papel central de juiz obstinado contra a corrupção ao de agente político do projeto extremista de Jair Bolsonaro é o grande arco narrativo dessa história cujos vieses só ficaram evidentes depois de serem revelados na Vaza Jato.
Os realizadores são cautelosos diante de interpretações conspiracionistas, como as que cercam a facada (ou “fakeada”) em 6 de setembro de 2018, episódio decisivo da campanha que elegeu Bolsonaro.
Não se discute a veracidade ou falsidade do atentado. A Trama, em vez disso, busca capturar os múltiplos efeitos daquele acontecimento, dando voz a intérpretes que evitam simplificações.
Ver o documentário funciona como rever uma série. Quando não somos mais ingenuamente enganados pelo lobo em pele de cordeiro, suas tramoias aparecem, e a gente não tem mais simpatias pelos canalhas. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os fragmentos de uma tramoia “
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