Cultura

Os filhos do Tropicalismo

‘Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now!’, que estreia na sexta 23, é um apelo para que a farra e imaginação sobrevivam à caretice brasileira

A Tropicália é revisitada no Teatro Oficina em SP. Fotos; Divulgação
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Em setembro, quando assisti ao documentário Tropicália, de Marcelo Machado, escrevi por aqui ter sentido falta de uma ponte entre o movimento, iniciado no fim dos anos 1960, e os dias atuais. (Releia clicando ).

Embora bem filmado, o longa parecia servir para qualquer efeméride sobre o movimento que Caetano Veloso jurava, já no fim dos anos 1960, estar sepultado. Dois meses depois, o assunto volta à cena, agora com o documentário Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now!, que entra em cartaz na sexta-feira 23. Dirigido por Ninho Moraes e Francisco César Filho, o filme de alguma forma estende essa ponte à qual Tropicália não tentou atravessar.

Vistos com certa distância, os documentários funcionam como obras complementares. No primeiro, uma história é (bem) recontada: a história da produção, da importância de seus fundadores num determinado contexto e o resgate de imagens históricas que mandavam para longe a romantização impregnada pelo tempo. Em Tropicalismo Now!, como o título leva a crer, o enfoque é outro. Interessam agora os frutos daquela história. Saem as imagens de arquivo de Glauber Rocha, Zé Celso Martinez Correa ou Helio Oiticica, inspiradores do movimento, e o revisionismo nas falas hoje dos protagonistas de ontem (a exceção é a participação de Gil, já com o status de ex-exilado que virou ministro da Cultura). Caetano Veloso, que classificou o filme de Marcelo Machado como “redundante”, ficou de fora.

Em vez disso, entra em cena o multi-instrumentista André Abujamra, a quem o diretor Ninho Moraes classificou como um resultado direto do Tropicalismo e da ideia segundo a qual era possível digerir um pouco de tudo numa síntese que não reconheceria barreiras. E foi de dentro do Teatro Oficina Uzyna Uzona, com sons inspirados na música do Zimbábue, da Bulgária e do Brasil, que Abujamra deu seu toque às canções de Gil, Caetano, Gal, Nara, Mutantes. Contou, para isso, com convidados como Luiz Caldas, o pai da axé music sobre quem, em condições normais de pressão e temperatura, muitos fãs da chamada mistura fina da música brasileira hoje torceriam o nariz. É este choque, proposto inicialmente pelos tropicalistas, que os diretores buscam resgatar e atualizar.

Fora do Oficina, o filme recrutou nomes como o do músico e professor de literatura José Miguel Wisnick para falar do movimento sob a perspectiva literária, filosófica, social. E, para lembrar que os tempos são mesmo outros, filmou crianças do projeto Guri a cantar Tropicália e Hino do Senhor do Bonfim. É como se os diretores dissessem: o Tropicalismo que Glauber Rocha jurou estar esgotado em seu auge, hoje está disperso nas formas mil de criação. Está na consequência (e mesmo na reação) ao movimento produzida no teatro (crítico ao tropicalismo, o diretor da Cia do Latão Sergio de Carvalho é um dos personagens do filme), nas escolas, nos livros, nas universidades, nas artes plásticas, nos desfiles de carnaval, no frevo. O risco é sair da sessão otimista demais. Caso contrário, o filme acaba soando como um apelo. Um apelo para que a farra e a imaginação sobrevivam em meio às investidas da caretice, das catalogações culturais e comportamentais que dividem, isolam, fundam barreiras e se transformam na expressão mais caricata de um país majoritariamente ranzinza – e, que, longe da ditadura, ainda sonha em linha reta. Um país que se tornou a antítese daquele Brasil possível sonhado na geleia geral.

Sendo assim, música, leitura dramática (feita por Gero Camilo), performance sobre fotos (com Alice Braga no papel de Lindonéia) funcionam como um resgate de quem vê, 45 anos depois do Festival de 67, uma fonte ainda a ser bebida e descoberta. A Tropicália nunca veio em tão boa hora.

Verônica. Das coincidências. Dois dias antes de ver Tropicalismo Now, tinha assistido a história da médica residente interpretada por Hermila Guedes no belo Era Uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes. O paralelo com a história tropicalista é quase inevitável. O Brasil de Verônica é o Brasil da dúvida, do tédio, do peso do mundo sobre os ombros. Jovem, bonita, desejada, ela começa a se assustar com a perspectiva de futuro apresentada a certa altura da vida, uma bifurcação entre a estudante sonhadora e a profissional aplicada. O futuro nos livros parecia brilhante, mas a realidade do hospital, em Recife, é outra. Ali, dá de cara com um Brasil profundo, amargurado e doente. Atende pacientes atacados por tristezas de origens não identificadas a olho nu. É o Brasil frio de quem vive cada dia mais e apenas para sobreviver.

Verônica equilibra pratos. É a filha no papel de mãe a cuidar de um pai que adoece. É a amante incapaz de amar. E se culpa pela incapacidade de projetar para ela o mundo regrado (e sagrado) vendido como decente, calcado na monogamia, nas responsabilidades, na futura maternidade e nas certezas em linha reta. Mas Verônica tem dúvidas. Não sabe se aquilo a faz feliz. Pior: como seus pacientes, não tem ideia do que a faria feliz. “Tá tudo padronizado”, diz a música cantada pela personagem em busca do que a faz única num mundo de tantos imperativos velados.

Esse desânimo, esse tédio – que ganha cores poéticas únicas, como poderia se esperar de um filme de Marcelo Gomes – são quebrados quando a personagem se estende diante do mar. A representação do infinitivo é a verdade pulsante para quem precisa de um mínimo de paz para flutuar sobre águas que se quebram em ondas sem necessariamente saber para onde vai. É como sair da caixa, dos limites, das amarras impostas pelo mundo concreto adentro, um mundo de proibições. Que adoece, que briga, que hostiliza e se desumaniza, como num corredor frio de hospital onde sobram remédios e faltam sol, vento, imaginação.

Como ela, há uma multidão, dentro e fora dos hospitais, adoecendo ao tentar sobreviver sem saber o que é a vida, a vida possível antes cantada numa geleia geral. Essa multidão que tem no rack da tevê o único sonho possível. Que se enforca em prestações para rodar de carro 0 em ruas entupidas, cheias de buzina e barreiras. Que repete chavões como verdades absolutas. E que corre sempre para enfim chegar ao nada – penso nisso toda vez que observo, em São Paulo, passageiros de metrô correndo em debandada, em desespero puro, para chegar antes dos usuários do metrô ao lado durante uma simples baldeação.

Esse mundo ao redor de Verônica – que é o mundo ao redor de todos nós – parece ser resultado direto de um esforço para dilacerar a imaginação e a experimentação em um mundo sem juízo final, como na música de Caetano. Porque as amarras de um tempo sombrio seguem por aí, espalhadas, e qualquer grito contra isso é pura resistência ou provocação. Falta Tropicalismo a essa gente careta e covarde.

Em setembro, quando assisti ao documentário Tropicália, de Marcelo Machado, escrevi por aqui ter sentido falta de uma ponte entre o movimento, iniciado no fim dos anos 1960, e os dias atuais. (Releia clicando ).

Embora bem filmado, o longa parecia servir para qualquer efeméride sobre o movimento que Caetano Veloso jurava, já no fim dos anos 1960, estar sepultado. Dois meses depois, o assunto volta à cena, agora com o documentário Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now!, que entra em cartaz na sexta-feira 23. Dirigido por Ninho Moraes e Francisco César Filho, o filme de alguma forma estende essa ponte à qual Tropicália não tentou atravessar.

Vistos com certa distância, os documentários funcionam como obras complementares. No primeiro, uma história é (bem) recontada: a história da produção, da importância de seus fundadores num determinado contexto e o resgate de imagens históricas que mandavam para longe a romantização impregnada pelo tempo. Em Tropicalismo Now!, como o título leva a crer, o enfoque é outro. Interessam agora os frutos daquela história. Saem as imagens de arquivo de Glauber Rocha, Zé Celso Martinez Correa ou Helio Oiticica, inspiradores do movimento, e o revisionismo nas falas hoje dos protagonistas de ontem (a exceção é a participação de Gil, já com o status de ex-exilado que virou ministro da Cultura). Caetano Veloso, que classificou o filme de Marcelo Machado como “redundante”, ficou de fora.

Em vez disso, entra em cena o multi-instrumentista André Abujamra, a quem o diretor Ninho Moraes classificou como um resultado direto do Tropicalismo e da ideia segundo a qual era possível digerir um pouco de tudo numa síntese que não reconheceria barreiras. E foi de dentro do Teatro Oficina Uzyna Uzona, com sons inspirados na música do Zimbábue, da Bulgária e do Brasil, que Abujamra deu seu toque às canções de Gil, Caetano, Gal, Nara, Mutantes. Contou, para isso, com convidados como Luiz Caldas, o pai da axé music sobre quem, em condições normais de pressão e temperatura, muitos fãs da chamada mistura fina da música brasileira hoje torceriam o nariz. É este choque, proposto inicialmente pelos tropicalistas, que os diretores buscam resgatar e atualizar.

Fora do Oficina, o filme recrutou nomes como o do músico e professor de literatura José Miguel Wisnick para falar do movimento sob a perspectiva literária, filosófica, social. E, para lembrar que os tempos são mesmo outros, filmou crianças do projeto Guri a cantar Tropicália e Hino do Senhor do Bonfim. É como se os diretores dissessem: o Tropicalismo que Glauber Rocha jurou estar esgotado em seu auge, hoje está disperso nas formas mil de criação. Está na consequência (e mesmo na reação) ao movimento produzida no teatro (crítico ao tropicalismo, o diretor da Cia do Latão Sergio de Carvalho é um dos personagens do filme), nas escolas, nos livros, nas universidades, nas artes plásticas, nos desfiles de carnaval, no frevo. O risco é sair da sessão otimista demais. Caso contrário, o filme acaba soando como um apelo. Um apelo para que a farra e a imaginação sobrevivam em meio às investidas da caretice, das catalogações culturais e comportamentais que dividem, isolam, fundam barreiras e se transformam na expressão mais caricata de um país majoritariamente ranzinza – e, que, longe da ditadura, ainda sonha em linha reta. Um país que se tornou a antítese daquele Brasil possível sonhado na geleia geral.

Sendo assim, música, leitura dramática (feita por Gero Camilo), performance sobre fotos (com Alice Braga no papel de Lindonéia) funcionam como um resgate de quem vê, 45 anos depois do Festival de 67, uma fonte ainda a ser bebida e descoberta. A Tropicália nunca veio em tão boa hora.

Verônica. Das coincidências. Dois dias antes de ver Tropicalismo Now, tinha assistido a história da médica residente interpretada por Hermila Guedes no belo Era Uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes. O paralelo com a história tropicalista é quase inevitável. O Brasil de Verônica é o Brasil da dúvida, do tédio, do peso do mundo sobre os ombros. Jovem, bonita, desejada, ela começa a se assustar com a perspectiva de futuro apresentada a certa altura da vida, uma bifurcação entre a estudante sonhadora e a profissional aplicada. O futuro nos livros parecia brilhante, mas a realidade do hospital, em Recife, é outra. Ali, dá de cara com um Brasil profundo, amargurado e doente. Atende pacientes atacados por tristezas de origens não identificadas a olho nu. É o Brasil frio de quem vive cada dia mais e apenas para sobreviver.

Verônica equilibra pratos. É a filha no papel de mãe a cuidar de um pai que adoece. É a amante incapaz de amar. E se culpa pela incapacidade de projetar para ela o mundo regrado (e sagrado) vendido como decente, calcado na monogamia, nas responsabilidades, na futura maternidade e nas certezas em linha reta. Mas Verônica tem dúvidas. Não sabe se aquilo a faz feliz. Pior: como seus pacientes, não tem ideia do que a faria feliz. “Tá tudo padronizado”, diz a música cantada pela personagem em busca do que a faz única num mundo de tantos imperativos velados.

Esse desânimo, esse tédio – que ganha cores poéticas únicas, como poderia se esperar de um filme de Marcelo Gomes – são quebrados quando a personagem se estende diante do mar. A representação do infinitivo é a verdade pulsante para quem precisa de um mínimo de paz para flutuar sobre águas que se quebram em ondas sem necessariamente saber para onde vai. É como sair da caixa, dos limites, das amarras impostas pelo mundo concreto adentro, um mundo de proibições. Que adoece, que briga, que hostiliza e se desumaniza, como num corredor frio de hospital onde sobram remédios e faltam sol, vento, imaginação.

Como ela, há uma multidão, dentro e fora dos hospitais, adoecendo ao tentar sobreviver sem saber o que é a vida, a vida possível antes cantada numa geleia geral. Essa multidão que tem no rack da tevê o único sonho possível. Que se enforca em prestações para rodar de carro 0 em ruas entupidas, cheias de buzina e barreiras. Que repete chavões como verdades absolutas. E que corre sempre para enfim chegar ao nada – penso nisso toda vez que observo, em São Paulo, passageiros de metrô correndo em debandada, em desespero puro, para chegar antes dos usuários do metrô ao lado durante uma simples baldeação.

Esse mundo ao redor de Verônica – que é o mundo ao redor de todos nós – parece ser resultado direto de um esforço para dilacerar a imaginação e a experimentação em um mundo sem juízo final, como na música de Caetano. Porque as amarras de um tempo sombrio seguem por aí, espalhadas, e qualquer grito contra isso é pura resistência ou provocação. Falta Tropicalismo a essa gente careta e covarde.

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