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Os filhos da bomba atômica

Em seu primeiro romance desde A Estrada, de 2006, Cormac McCarthy flerta com a ciência e mostra um planeta à beira da aniquilação

Os filhos da bomba atômica
Os filhos da bomba atômica
Projeto. O autor, de 89 anos, sempre esteve interessado na ideia de fim do mundo - Imagem: Beowulf Sheehan
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“Toda história física se transforma numa quimera com o passar do tempo”, diz uma personagem no novo romance de Cormac ­McCarthy, O Passageiro. A narrativa histórica é, para o autor norte-americano, a força motora da sociedade e das tramas que ele engendra. “As coisas separadas de suas histórias não têm significado. Elas são apenas formas”, escrevia ele três décadas atrás, em A Travessia (1994).

No novo livro, o primeiro em 16 anos, o autor dá forma à história por meio da narrativa íntima de um irmão e uma irmã. Lidando com temas caros à sua obra, como família e apocalipse, ele não se contenta em ficar na zona de conforto e amplia desta vez seu horizonte para questões científicas.

Bobby Western e sua irmã, Alicia, são os filhos de um colega fictício de trabalho de Robert Oppenheimer, o físico conhecido como “o pai da bomba atômica”. Esse dado biográfico marcará a vida dos irmãos: eles carregam como herança não apenas a genialidade do pai, mas o peso da destruição.

McCarthy, de 89 anos, sempre esteve interessado no fim do mundo, seja de forma explícita, como em A Estrada (2006), seja histórica, como em Meridiano de Sangue (1985). Não é surpresa, portanto, que ele retome a questão. Mas, no novo livro, ao contrário do que fez, por exemplo, na famosa Trilogia da Fronteira, publicada nos anos 1990, um complexo ­western existencialista, o autor nos oferece uma escrita lacônica, contida.

Muitas das informações de O ­Passageiro vêm dos diálogos, nos quais a ausência de marcação das falas – ou seja, nem sempre sabemos quem as enuncia – nos joga num labirinto de embates. A trama se passa em 1980, um momento crucial na história dos Estados Unidos, marcado pela ascensão e pelo fortalecimento do neoliberalismo.

O PASSAGEIRO. Cormac McCarthy. Tradução: Jorio Dauster. Companhia das Letras (392 págs. 84,90 reais)

Quando a narrativa começa, Alicia, portadora de esquizofrenia, já se matou na instituição onde estava internada. O lugar se chama Stella Maris, título do romance subsequente do autor, a ser lançado no Brasil no primeiro semestre de 2023. Stella Maris, situado em 1972, traz uma série de conversas da personagem com seu terapeuta.

McCarthy raramente foi um escritor de personagens femininas fortes. Uma das exceções é Rinthy, protagonista de Outer Dark (1968), retratada a partir da relação incestuosa com o irmão de quem engravida. Em O Passageiro, Alicia é uma figura dominante, embora apareça em ­flashbacks. Bobby seguirá ambiguamente apaixonado por ela, anos depois de sua morte.

Ele, por sua vez, é contratado para encontrar um avião particular que caiu próximo a New Orleans. Lá chegando, descobre que a caixa-preta sumiu, e apenas nove corpos foram encontrados, apesar de dez pessoas terem embarcado.

McCarthy coloca seus personagens a vagar em um mundo destituído de sentido. Se, em A Estrada, livro que lhe rendeu o ­Pulitzer e um filme protagonizado por Viggo Mortensen, o planeta estava destruído, em O Passageiro o mundo está em processo de aniquilação, mas ninguém se dá conta disso. É como se os personagens lutassem de maneira vã contra a força da história.

“(Bobby) Western entendia plenamente que devia sua existência a Adolf Hitler. Que as forças da história que tinham dado origem à sua vida conturbada passavam por Auschwitz e Hiroshima, os eventos gêmeos que selaram para sempre o destino do Ocidente”, diz o narrador. Do Ocidente, de Bobby e de Alicia. •

VITRINE

Por Ana Paula Sousa

O impressionante conto Pai Contra Mãe, retrato da época da escravidão feito por Machado de Assis, ganhou nova vida graças à Cobogó. A edição (72 págs., 62 reais) traz três textos com reflexões contemporâneas sobre o racismo, a literatura e o País, e ilustrações assinadas por Márcia Falcão.

A Segunda Espada: Uma História de Maio (Estação Liberdade, 176 págs., 56 reais) é o primeiro romance de Peter Handke desde que ganhou o Nobel, em 2019, e foi criticado por sua postura política. O protagonista é um homem que deseja vingar a mãe, acusada de ser simpatizante do nazismo.

A Loteria, um dos mais célebres contos de Shirley Jackson (1916-1965), dá título à coletânea lançada pela Alfaguara, com tradução de Débora Landsberg. A Loteria e Outros Contos (264 págs., 79,90 reais), evidencia a astúcia narrativa da mestra norte-americana da literatura de horror.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os filhos da bomba atômica”

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